A controvérsia contra os Pelágio
A antropologia pelagiana: centro da
discussão
A outra controvérsia que leva
Agostinho a trabalhar o conceito de eternidade, desta vez pelo prisma de sua
Antropologia, é a controvérsia contra Pelágio e seus seguidores, por volta de
411 a 412, em Cartago. Monge Britânico, eunuco, natural da Irlanda, engajou-se
em intenso conflito contra Agostinho, numa questão que envolvia basicamente o
problema do livre-arbítrio humano.
Sproul, citando
Harnack, demonstra a importância histórica desse debate, contando-o como um dos
mais intensos e proveitosos:
A
questão entre Pelágio e Agostinho era clara. Não estava ofuscada por argumentos
teológicos intricados, especialmente no começo. “nunca houve, talvez, uma outra
crise de igual importância na história da igreja na qual os oponentes tenham
expressado os princípios em debate tão clara e abstratamente. Somente a disputa
Ariana pode ser comparada a ela”[1].
Para Pelágio, o
homem continuava habilitado, mesmo depois da queda, a fazer o bem se assim
desejasse e que não se fazia necessário uma assistência especial da graça de
Deus para que o ser humano o obedecesse.
Ele acreditava
que o homem estava habilitado para atender a todos os chamados de Deus e quando
Ele o convoca a arrepender-se é porque o homem pode fazer isto, por ele só, sem
que seja necessário o auxílio da Graça Divina; caso contrário, Deus não o
haveria ordenado, pois não ordena nada que seja impossível. A idéia de
livre-arbítrio é predominante no pensamento Pelagiano. Para ele, o homem pode
alcançar tudo o que se requer dele, quer em assuntos que digam respeito à moral
quer em assuntos pertinentes à religião e à sotereologia, por meio de seu
próprio esforço. Esta habilidade do homem se estende, em Pelágio, inclusive, à
escolha do seu eterno destino.
Para efeito
didático, veremos resumidamente as premissas do Pensamento Pelagiano com o
objetivo de contrastar, posteriormente, com o Pensamento Agostiniano sobre o
destino dos homens e a continuação da vida de sua alma, de sua consciência; o
que, conseqüentemente, nos conduzirá de volta à questão do tempo, fazendo
um contraponto entre duração e
eternidade.
A primeira
premissa é que Deus é bom e as outras decorrem basicamente desta. A segunda é
que Deus sendo completamente bom, criou tudo igualmente bom, sendo boa toda sua
criação; isto inclui o homem que tem a liberdade como bem supremo. Para
Pelágio, a essência do livre-arbítrio do homem consiste em sua habilitação para
escolher entre o bem e o mal, tendo recebido essa habilitação, como parte
integrante de sua natureza, do próprio Deus. A terceira premissa aponta para a
impossibilidade de mudança nessa natureza, livre e boa do homem, aconteça o que
acontecer. Para ele, não há corrupção inerente no homem; muito menos alguma
coisa o impele para o pecado ou para o mal; cada maldade que o homem pratica
“flui de um novo começo, um bloco limpo de papel que não é inscrito a priori
com alguma predileção”[2].
Sua quarta premissa ensina que a natureza humana, como tal, é inalteravelmente
boa, isto é, o homem é essencialmente bom. A quinta premissa de seu pensamento
indica que o mal ou pecado nunca pode transformar-se em natureza; para ele, o
pecado é sempre um ato, nunca uma natureza. Essa mesma maldade, no homem, não
pode ter sido herdada. Na sexta premissa Pelágio de certa forma retira a
culpabilidade do homem. Segundo ele a maldade é fruto das armadilhas de satanás
e da concupiscência sensual. Isto equivale dizer que a maldade não é interior
ao homem mas age nele de forma extrínseca. A sétima premissa aponta para a
possibilidade do homem, por ele mesmo, alcançar a perfeição. Pelágio não só
acreditava ser isto possível como reconhecia também que alguns homens haviam
conseguido tal façanha; isto posto, devido seu pensamento contrário à tese do
pecado original ou ainda da hereditariedade da maldade. Na oitava premissa
Pelágio ensina que o primeiro homem foi criado livre e possuidor de um livre
arbítrio completo e que essa habilidade natural, por ser um dádiva e não
adquirida por ele, não poderia ser mudada porquanto lhe foi atribuída e outorgada
em sua criação. A nona premissa indica que o primeiro homem pecou por vontade
própria, ou seja, não foi coagido por ninguém e nem mesmo pela sua própria
natureza a errar, fez porque escolheu fazer, porque era livre para isto. Este
pecado do primeiro homem não pode, segundo ele, ser a causa da morte dos seus
descendentes pois, tanto ele como estes foram criados já com a mortalidade em
sua natureza. De onde decorre a décima premissa que afirma categoricamente que
a posteridade do primeiro homem não herdou nem a morte física nem a morte
espiritual, simplesmente morre sua descendência porque, à semelhança do
material genético inicial, também é mortal; e ainda, se morre uma morte
espiritual, isto é, a separação definitiva de seu criador, é por culpa particular,
não podendo ser atribuída culpabilidade ao tronco da espécie. Assim também
afirma a décima primeira premissa. Pelágio considerava a doutrina do pecado
transmitido “como uma doutrina blasfema arraigada no maniqueísmo. Pelagio
insistia que seria injustiça de Deus transmitir ou imputar o pecado de um a
outros”[3]. A
décima segunda premissa afirma que todos os homens são criados por Deus na
mesma condição de Adão antes da queda. Isto equivale dizer que o homem nasce
natural e essencialmente bom. Em sua décima terceira premissa afirma que o hábito de pecar enfraquece a vontade; mas
isto, em hipótese alguma deve ser interpretado como uma mudança de natureza. A
décima quarta premissa revela que Pelágio não rejeitava de todo a graça. Para
ele, a graça facilita a bondade, o que não significa dizer que o homem só pode
ser bom com o auxilio da graça, ao contrário, ele pode ser bom sem essa
assistência, seguindo sua própria natureza boa. A décima quinta premissa afirma
que a graça de Deus é dada no ato da criação, isto é, ela vem incorporada à sua
natureza que é essencialmente boa e daí decorre que não pode haver mudança de
essência. A décima sexta premissa aponta para a graça da instrução, que muito
embora não possua nenhum valor de modificação no interior do homem ela produz
uma clara definição da bondade. A décima sétima afirmação pelagiana afirma que
a graça é dada não só por meio da lei mas também por meio de Cristo, cuja
principal obra foi tão somente nos fornecer o exemplo da bondade. E, por fim,
sua ultima argumentação ensina que a graça de Deus é compatível com sua
justiça, ou seja, ela não fornece benefício adicional algum mas é dada mediante
o mérito de cada um, isto é, uma graça que não é graça, uma graça merecida.
Como vimos
as principais reivindicações pelagianas diziam respeito à sua Antropologia, ao
seu conceito de homem, como afirma Sproul citando Schaff, fazendo a seguinte observação acerca da Antropologia
de Pelágio:
Pelágio,
destituído da idéia do todo orgânico da raça ou da natureza humana, via Adão
meramente como um indivíduo isolado; ele não deu a Adão nenhum lugar
representativo, logo seus atos não acarretavam conseqüências além de si mesmo.
Em sua visão, o pecado do primeiro homem consistiu de um único e isolado ato de
desobediência ao comando divino [...]. Esse ato de transgressão único e
desculpável não gerou conseqüências à alma e nem ao corpo de Adão, muito menos
à sua posteridade, onde todos se mantém ou caem por si mesmos[1].
Apesar
de sua antropologia diferenciada da habitual, Pelágio tentava manter-se ligado
à Igreja e por vezes até fazia questão de ser considerado como um ortodoxo:
Orósio,
um amigo e discípulo de Agostinho, solicitou uma sindicância contra Pelágio em
415, mas Pelágio foi exonerado. Em dezembro desse mesmo ano, um sínodo
palestino denunciou alguns escritos de Pelágio. Quando o sínodo exigiu que ele
renunciasse ao seu ensino de que o homem pode estar sem pecado sem a ajuda da
graça, Pelágio capitulou. Ele disse, “eu os anatemizo como insensatos, não como
heréticos, visto não ser caso de dogma”. Ele repudiou o ensino de Coelestius,
dizendo: “Mas as coisas que declarei não serem minhas, eu, de acordo com a
opinião da santa igreja reprovo, pronunciando um anátema a todo aquele que se
opuser” [...] Como resultado Pelágio foi considerado ortodoxo. [...] Isso
deixou Pelágio com a difícil tarefa de recuperar a sua credibilidade diante de
seus próprios defensores [...] e Agostinho disse, “não foi a heresia que foi absolvida lá, mas o
homem que a negou”. Dois sínodos norte-africanos aconteceram em 416 e ambos
condenaram o pelagianismo[2].
Fica claro no
Pensamento Pelagiano uma visão positiva acerca do homem e isto influencia todo
o restante da sua construção intelectual. Para ele a queda do homem não trouxe
para si uma repentina destruição, muito menos ainda para sua descendência:
O homem pelagiano
goza de perfeito equilíbrio moral.
O pecado não atinge sua natureza, mas seu mérito. Quando peca, torna-se culpável de sua má ação. Perdoado volta à sua perfeição. Não é prisioneiro de uma inclinação mórbida para o mal[3].
O pecado não atinge sua natureza, mas seu mérito. Quando peca, torna-se culpável de sua má ação. Perdoado volta à sua perfeição. Não é prisioneiro de uma inclinação mórbida para o mal[3].
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