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terceiro capítulo abordamos sobre O PURITANISMO
E DEMOCRACIA MODERNA
Neste capítulo,
iniciamos abordando a questão da relação entre Religião e política a partir de
Max Weber. Em seguida cuidamos em tratar
do envolvimento dos Puritanos com a política e relembramos que a igreja da
Inglaterra era controlada pelo governo, pela coroa; portanto pela força
política. Por isso, os puritanos logo se deram conta, após várias tentativas,
que uma reforma integral da igreja só seria possível com um engajamento
político mais acentuado. De forma que
registramos o início da atuação dos puritanos, a exemplo de Thomas Beard, um jovem ministro puritano, que
influenciou grandemente a vida do puritano Oliver Cromweel, um dos principais
personagens da chamada “Revolução Inglesa”. Lições como a necessidade de
sujeição dos príncipes às leis civis e a consideração da propriedade particular
como sagrada, até mesmo em oposição aos Reis, no dizer de Christopher Hill, em
se tratando do jovem Oliver, “não foram desperdiçadas” (Ibid., p. 38). Outro
importante personagem da política e alto membro do Parlamento, responsável
direto pelo julgamento e destituição dos principais ministros do rei Carlos I
foi o puritano de convicções presbiterianas, John Pym, além de muitos outros.
Também
enfrentamos a difícil questão da desobediência civil, que era um assunto muito
caro à Calvino e aos Puritanos, que abordavam o assunto a partir da
possibilidade de quebra do quinto mandamento, que prevê a obediência aos
superiores. Calvino, por exemplo, introduz o conceito de “pessoas particulares
ou privadas”, que, em síntese, é aquela que não é investida de nenhuma
autoridade civil. Para ele, individualmente, a moderação nos assuntos públicos
deve ser a regra. Individualmente, não se deve “intrometer-se por iniciativa
própria, nem querer influir temerariamente no ofício do magistrado, nem tentar
coisa alguma em público” (CALVINO, 2006, vol. IV, p.167).
Portanto, esse
tipo de pensamento simplesmente proibia a rebelião contra a autoridade superior
do monarca por parte de indivíduos não investidos de autoridade pública e
civil. Os próprios Puritanos aceitavam e reconheciam esse ensinamento, tanto é
assim que escreveram detalhamento sobre isso quando da análise do quinto
mandamento, da pergunta 123 até a 133, do catecismo maior de Westminster,
formulado em meio à guerra civil da Inglaterra, a partir de 1643.
Como então,
enfrentar o poder de Jaime I e depois de Carlos I, que advogavam para si o
“direito divino dos reis” e à essa altura já haviam se tornado déspotaa, sem,
contudo, quebrar o quinto mandamento? Os puritanos, então, diante desse dilema,
se tornaram, eles mesmos, “magistrados civis”, entrando definitivamente para a
política; tendo, muitos deles, sido eleitos para a Câmara dos Comuns, do
Parlamento inglês e agora estavam investidos de autoridade civil e acobertados
pela exceção à regra que permitia uma contestação mais incisiva, por outra
autoridade civil, quando a questão chegasse a um ponto que obedecê-la
implicasse, necessariamente, desobedecer a Deus, conforme Atos 4:19. A partir
daí os puritanos, legitimados por um mandato civil, iniciaram uma série de
enfrentamento à coroa, que acabaram por resultar numa guerra civil, que ficou
conhecida como “Revolução Puritana”, a partir de 1640.
Devemos lembrar que, para além de outras
possíveis causas, inclusive econômicas, os Puritanos se envolveram nessa guerra
contra o rei da Inglaterra, tanto fazendo parte do Parlamento quando do seu
exército, liderado pelo puritano Oliver Cromwell, com o objetivo maior de
reformar a igreja da Inglaterra.
A doutora Eunice Ostrensky, professora
de teoria política moderna do departamento de ciência política da Universidade
de São Paulo, em sua tese de doutorado, publicada sob o título “As
Revoluções do Poder”, cujo ambiente de análise é exatamente a Inglaterra do
século XVII, sobre a importância dos motivos religiosos que acabaram
desencadeando a guerra civil, fazendo coro com Christopher Hill, afirma:
Quanto aos motivos
religiosos da Grande Rebelião, seria estéril negá-los; andavam por todas as
cabeças e pelas bocas. Prova disso é o papel da Bíblia como instrumento de
compreensão e explicação dos fenômenos políticos, sociais e até econômicos
(OSTRENSKY, 2005, p.23).
Por fim, o Parlamento
inglês, capitaneado por importantes puritanos que possuíam majoritariamente
convicções presbiterianas, que privilegiava o governo representativo, venceu a
guerra civil contra o rei Carlos I, que fora decapitado em 1649, sob a ordem do
puritano Oliver Cromwell, e estabeleceram um governo representativo na
Inglaterra, tendo sido o único período na história dessa grande nação como
República. Também nesse período a igreja presbiteriana se tornou a igreja
oficial da Inglaterra. A professora
Eunice Ostrensky captou bem essa transição da convicção religiosa de governo
representativo dos puritanos, da igreja para a sociedade civil quando afirma,
se referindo aos puritanos:
Em
meados de 1640, [... ] um grupo político aproveita a oportunidade que os tempos
oferecem e leva das igrejas [...] para as praças públicas suas discursões sobre
liberdade e igualdade. “Agora a Inglaterra se transformou numa outra Atenas,
onde a maioria só passa o tempo contanto alguma novidade [...], anuncia o
número 14 do jornal realista de dezembro 1647. [...] a democracia apareceu, não
como finalidade, mas como resultado da busca por liberdade (OSTRENSKY, 2005, p.70).
Também
sobre esse início da democracia moderna, por conta da atuação política dos
puritanos, no Parlamento Inglês, o famoso filósofo David Hume, em sua
importante obra “História da Inglaterra”, publicada em 1762, escreve um
capítulo com o sugestivo título “1640: da monarquia à democracia”, indicando
que foi exatamente a Revolução Puritana que trouxe luz à democracia moderna,
transferindo a base da soberania do rei ao povo, por meio de seus
representantes, como diz: “a transferência do poder soberano para os Comuns, agora de
certa maneira completa a alteração do governo” (HUME, 2017 [1762], p.310).
Concluímos como o testemunho do famoso
historiador francês e professor de Sorbonne, François Pierre Guillaume Guizot
(1787-1874). Sua extensa obra “A História
das Origens do Governo Representativo na Europa”, publicada originalmente
em 1851, como compilação de suas palestras em Sorbonne, entre 1820 e 1822,
sobre a atuação dos puritanos na Câmara dos Comuns, no Parlamento inglês,
afirma:
Mas de um século foi
necessário para permitir que os Comuns ingleses – revigorados e fortalecidos
[...] de um ponto de vista moral, pela reforma da religião – adquirissem
importância social e dignidade intelectual suficiente para se colocarem, por
sua vez, à frente da resistência ao despotismo, levando a antiga aristocracia
trás de si. Essa grande revolução na situação da sociedade ocorreu no reinado
de Carlos I, e determinou a revolução política que, após 50 anos de conflito,
finalmente estabeleceu o governo representativo na Inglaterra (Ibid., p.802).
Continua na próxima postagem - 6/6