A primeira controvérsia contra os Maniqueus:
O que fazia Deus antes de Criar a Terra? Cont.
Nem mesmo em suas eternas
palavras há sombra de mudanças ou variação, do contrario onde estaria o
conselho eterno? Em Deus, devido sua eternidade não se pode pensar na linguagem assim como em nós ocorre:
sucessivamente e depois do pensamento. Tudo, pensamento, palavras e frases
acontece ao mesmo tempo. Os tipos de antropormofismo por vezes nos dão uma
falsa impressão de secessão em suas palavras e atos, porém como o entenderíamos
nós, pelo menos em fagulhas, se não utilizássemos esse recurso de dizer as
coisas concernentes a Deus através das coisas que conseguimos entender?
Pois o
que foi dito não foi sucessivamente
proferido – uma coisa concluída para que a seguinte pudesse ser dita, mas todas
as coisas proferidas simultânea e eternamente. Se assim não fosse, já haveria
tempo e mudança, e não verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade[1].
O que fazia Deus antes de criar o
mundo?
“Aqueles que falam assim, ainda não te compreenderam [...]; ainda não
compreenderam como se fazem as coisas criadas por ti e em ti”[2]. Em
Deus não há devir, apenas ser. “Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao
passo que o tempo nunca é todo presente”[3].
Com esse
desvinculamento do tempo perguntado pelos maniqueus e a eternidade divina,
Agostinho esvazia seus argumentos, a ponto de responder, supostamente não
respondendo, que antes da criação “Deus preparava o inferno para aqueles que
perguntam estes profundos mistérios”[4].
Com essa séria construção lógica,
confrontando o tempo perguntado pelos maniqueus com a eternidade de Deus,
Agostinho põe por terra toda cadeia argumentativa do mito maniqueu, de uma
criação co-eterna e assim sendo, sem um criador. Põe abaixo também a dualidade
maniquéia da existência também co-eterna de duas forças incriadas, o bem e o
mal e empunhando a bandeira, lógica e racional, não apenas mística, de que
todas as coisas, por sua natureza, quer direta ou indiretamente, são criaturas
de Deus, independentemente de seus juízos de valores.
Agostinho afirma um Deus eterno
e uma criação não eterna, por sua própria natureza, e que todas as coisas foram
criadas por Deus, quer direta ou indiretamente e que não cabe a pergunta: “o
que Deus fazia antes”, pois, antes da criação, não havia tempo, nem homem, para
que se possa utilizar o termo “antes”, nem criação, apenas Deus em seu atributo
incomunicável de imutabilidade, em sua eternidade:
Porventura
Senhor, tu és eterno, já não conheces o que te digo? Não vês no tempo o que se
passa no tempo? Por que motivo te narro então tantos acontecimentos? Não é,
certamente, para que os conheças por mim, mas para despertar meu amor por ti[5].
A partir desse conceito de
eternidade e em contraponto com ele, Agostinho desenvolve, de forma mais
elaborada, sua teoria sobre o tempo, abordando entre outros aspectos, a
subjetividade do tempo, no
desenvolvimento da noção de passado, presente e futuro, perpassando
também pelo primado do presente, que é, como vimos, uma janela para a
eternidade, que é um presente que não passa.
A primeira
controvérsia de Agostinho com os maniqueus - sobre o que Deus fazia antes de
criar o mundo – levou-o a afirmar a eternidade de Deus e assim procedendo,
inegavelmente, admite a possibilidade de um “tempo” para além-do-tempo; o faz
entretanto, buscando apoio nas revelações, não diminuindo por isto, de forma
alguma, o valor lógico e racional de seus argumentos. Fica evidente de igual
modo que Deus sendo eterno – Ele sozinho – sem ninguém com quem tome conselho -
é também livre para criar; e o que criou, criou segundo sua exclusiva, soberana
e eterna vontade:
Tuas obras te louvam para que te amemos e nós te amamos, para que tuas
obras te louvem, elas que tiveram início e fim no tempo, nascimento e morte,
progresso e regresso, beleza e imperfeição. Todas elas têm sucessivamente manhã
e tarde, ora oculta ora manifesta. Do nada foram criadas por ti, não da tua
substância; não de alguma matéria não tua que existisse antes, mas de matéria
concreta, criada por ti ao mesmo tempo que lhe deste uma forma sem nenhum intervalo
de tempo. Uma é a matéria do céu e da terra. Essa matéria foi tirada da matéria
informe, mas essas duas operações foram simultâneas, de forma que entre a forma
e a matéria não houve intervalo de tempo[6].
A possibilidade da
eternidade está intimamente ligada com a questão da imutabilidade. Para
Agostinho, Deus é um eterno “Ser”, que não muda, que não possui sequer sombra
de variação; mais que isso, ele é único sob essas condições:
A imutabilidade de Deus é necessariamente concomitante com sua
asseidade. É a perfeição pela qual não há mudança nele, não somente em seu Ser,
mas também em suas perfeições, em seus propósitos e em suas promessas. Em
virtude deste atributo ele é exaltado acima de tudo quanto há, e é imune de
todo acréscimo ou diminuição e de todo desenvolvimento ou decadência em seu Ser
e em suas Perfeições [...] Até a razão nos ensina que não é possível nenhuma
mudança em Deus, visto que qualquer mudança é para melhor ou para pior. Mas em
Deus, a perfeição absoluta, melhoramento e deterioração são igualmente
impossíveis[7].