O QUE É O HOMEM?
Finalmente,
depois de desconstruir a idéia de uma consciência existente apenas como uma
espécie de espelho do cérebro, Bergson se vê diante do mesmo antigo problema
ontológico: O que é o ser “homem”? A essa questão responde de forma simples,
nunca superficial: matéria e consciência.
O homem é,
enquanto matéria, “submetido à necessidade, desprovido de memória [...] nada
acrescentando ao que já havia no mundo” (BERGSON, 1979d, p.77).
A matéria
serve como uma espécie de aprisionamento do homem no presente, o que não
devemos confundir com a teoria platônica, pois Bergson não vê o corpo como uma
“prisão”, no sentido negativo utilizado por Platão. Para ele, isso é apenas uma
constatação, sem a preocupação de juízos de valores, sem contar que a interação
que há entre o corpo e o outro elemento constitutivo do homem, que não
pré-existe, como afirma Platão, ao contrário: co-existe, se dá de forma natural
e positiva, como ele mesmo afirma: “A matéria é necessidade, a consciência é
liberdade; mas por mais que elas se oponham uma à outra, a vida encontra meio
de reconciliá-las” (BERGSON, 1979d, p.75).
Esse
confinamento no momento presente se dá devido à constituição do corpo, e
Bergson faz questão de frisar isso para evidenciar ainda mais o outro
contraponto ontológico – a alma.
Bergson, ao
analisar o problema do tempo, defende certa primazia do presente, de forma que
as outras modalidades de tempo parecem orbitar em torno dele. Esta primazia é
ainda mais acentuada com relação ao corpo, como afirma: “o corpo é matéria, a
matéria está no presente” (BERGSON, 1979d, p.84). E novamente, para clarificar ainda mais essa
idéia, na forma de síntese, afirma ele que “o corpo que está confinado ao
momento presente no tempo, e limitado ao lugar que ocupa no espaço, que se
conduz como autônomo e reage mecanicamente às exigências exteriores” (BERGSON,
1979d, p.84).
Bergson
teve sua formação lastreada sob os moldes do Positivismo, não ficando, contudo,
preso aos seus ditames. Esse conhecimento científico, sobretudo das ciências
biológicas, matemáticas e físicas, com uma boa ênfase em mecânica, foram
experiências relevantes em sua vida, e o habilitaram ainda mais para aprofundar
uma metafísica que conduzisse o homem aos fatos reais; a não retirar a verdade
dos fatos, mas, antes, a experimentar a própria verdade no próprio fato. Isso
já havia sido almejado por Spencer, mas, por não ter “os conhecimentos
necessários de mecânica” e das outras ciências positivas, não logrou êxito em
sua investida, deixando difícil missão para Bergson.
O fato é
que, mesmo sendo um homem das ciências, Bergson não se conformava com a falta
de fidelidade nas respostas oferecidas pelo Positivismo e pela própria
metafísica tradicional, sobretudo quanto à questão do tempo.
Para ele, o
homem não pode ser constituído apenas de moléculas e outros centros nervosos,
ainda que sofisticadíssimos. Ao lado disso, existe um outro elemento, talvez
nem mais nem menos importante que o primeiro, mas que não pode ser negado enquanto
elemento igualmente constitutivo da essência do ser humano: a alma. Centro de
toda imprevisão, possuindo caráter voluntário e antagônico à previsibilidade da
matéria é, por isso mesmo, e não por não se deixar dominar e por não “caber”
nas respostas pré-fabricadas das ciências positivas, negada, como percebe
Bergson:
A verdade é que se pudéssemos, através do
crânio, ver o que se passa no cérebro que trabalha, se dispuséssemos, para
observar o interior do cérebro, de instrumentos capazes de aumentar milhões de
vezes mais do que nossos melhores microscópios, se assistíssemos assim a dança
das moléculas, átomos e elétrons, de que é feita a substância cerebral [...]
saberíamos tão bem quanto à pretensa “alma” tudo o que ela pensa, sente e quer
tudo o que ela acredita fazer livremente enquanto o faz mecanicamente [...]
pois a pretensa alma, consciente apenas para abarcar uma pequena parte da dança
inter-cerebral [...]. “A alma consciente”, é quando muito, um efeito que
percebe efeitos (BERGSON, 1979e, p.75).
Além das
características de imprevisibilidade, o que a torna também sempre criadora,
pois, como suas atitudes não podem ser previstas, todas as suas realizações
serão sempre novas, nunca antes existentes, essa alma possui também a
capacidade de ultrapassar, de transcender, não sendo nenhum tipo de reflexo do
material, do corpo, isto é, não pode ser encontrada em nenhum lugar do corpo,
nem mesmo nos neurônios e teias cerebrais[i].
Isso equivale a dizer que a alma é outro elemento constitutivo do ser humano,
dotado de distinção e características próprias, nunca fruto de emanação da
matéria, do corpo.
A alma transcende, ultrapassa todos os limites do corpo a
quem está intrinsecamente ligada, mas, ao mesmo tempo, separada por suas
próprias distinções categóricas. A alma ultrapassa o corpo tanto no espaço como
no tempo. No espaço, porque, diferentemente do nosso corpo, que está detido nos
contornos da matéria que o limita, tem a capacidade de perceber, de ver o que
está distante do nosso corpo, “podendo deslocar-se até às estrelas”; “viajar” a
milhas e milhas de quilômetros, enquanto nosso corpo permanece inerte,
segurando um bom livro.
Mas
a alma também transcende o corpo no tempo. Nosso corpo, sendo matéria, está no
presente, e ainda que traga em si os traços dos tempos passados, só o são
assim, passados, por causa da alma, da consciência que assim os interpreta,
como diz Bergson:
Se é verdade que o passado aí deixa seus
traços, são traços de passados apenas para uma consciência que os percebe e
interpreta o que percebe à luz do que ela recorda: a consciência, ela sim,
retém o passado enrolando sobre si própria, na medida em que o tempo passa, e
prepara com ele um futuro que ela contribuirá para criar (BERGSON,
1979d, p.83).
Bergson
parece ter apreendido essa noção de alma, espírito, consciência, não somente
através de seus métodos experimentais de um “empirista radical”, em contrapondo
com o elemento corpóreo e material, mas, possivelmente, pode ter sofrido algum
tipo de influência do pensamento judaico, uma vez que era de família judaica[ii].
Isso pode explicar porque se utiliza de sinônimos para representar a idéia de
consciência, como, por exemplo, espírito, alma, eu. A utilização de sinônimos é
muito comum na literatura judaica, além de considerar também a igualdade entre
conceitos:
É costume entender que o homem é constituído de
duas partes distintas, e de duas somente, a saber, alma e corpo. Várias
palavras são empregadas no Velho Testamento para indicar o elemento inferior do
homem ou parte dele, como: carne, pó, ossos, entranhas, rins e também
expressões metafóricas como “casa de barro”. Há também diversas palavras que
indicam o elemento superior, como: espírito, alma, coração e mente (BERKHOF,
1998, p. 193).
Vejamos
como Bergson entende a alma:
Apreendemos algo que se estende muito mais
longe que o corpo por todos os lados e que
cria atos ao se criar continuamente a si mesmo, é o “eu”, é a “alma”, é
o “espírito” – o espírito sendo precisamente uma força que pode tirar de si
mesmo mais do que contém, devolver mais do que recebe, dar mais do que possui.
Eis o que cremos (BERGSON, 1979e. p.84.)
Parece-nos
claro que Bergson, diferentemente das ciências, acredita na existência de uma
alma autônoma em relação ao corpo, e que o ultrapassa, transcendendo-o não somente
no espaço, mas também no tempo. E isto não é uma afirmação ao acaso ou
puramente religiosa ou ainda desprovida de rigor científico; pelo contrário,
ele chega a esta conclusão em oposição ao “aprisionamento no presente” e na
circunscrição do espaço a que está submetida a matéria, podendo,
conseqüentemente, ser previsto, limitado e dominado. Mas, contrariamente, o que
experienciamos nas profundezas do nosso eu é “indubitavelmente que nos sentimos
livres, que tal é a nossa impressão [...] àqueles que sustentam que este
sentimento é ilusório, incumbe, pois, a obrigação da prova” (BERGSON, 1979e.
p.86).
O que é o homem? Bergson, diferentemente de uma visão
materialista, entendia que o homem possui, além de um corpo, uma dimensão
espiritual. Para ele, a vida não se resume “ao vai-e-vem das moléculas
cerebrais”. Essa forma “bergsoniana” de conceber o homem ou qualquer outra
resposta dessa pergunta ontológica refletirá, indiscutivelmente, nas decisões
éticas[iii].
[i]
Considerando que a alma bergsoniana é a própria consciência, evidentemente,
este pensamento não tem sustentação nas ciências positivas. Os avanços
científicos demonstram uma crescente tendência de vinculação da consciência ao
cérebro. Negar essa verdade científica, em última análise, é negar a própria
razão, segundo DELNERO, Henrique
Schutzer. O sítio da mente: pensamento e vontade no cérebro humano.
São Paulo: Collegium Cognitio, 1997. p. 18: “Em não se reconhecendo gerada no
sítio cerebral, a mente nega a ciência; nega o desvio e seu tratamento; nega a
ética nas relações entre seres biológicos e, finalmente, nega a razão. Resgatar
uma noção científica da mente, definindo-lhe o local, a função, o desvio e a reunião
em grupo pode nos guiar na síntese de uma nova teoria da vida individual e na
visão mais clara de certos impasses coletivos”. A ciência não só vincula a
consciência ao cérebro, mas identifica áreas específicas para funções
específicas, como afirma MACHADO.
Ângelo. Neuroanatomia funcional. São
Paulo: Atheneu, 2004. p. 275: “Durante muito tempo acreditou-se que os
fenômenos emocionais estariam na dependência de todo o cérebro. Coube a Hess,
prêmio Nobel de medicina, demonstrar que esses fenômenos estão relacionados com
áreas específicas do cérebro”. Ainda sobre essas áreas específicas do cérebro,
afirma BEAUPORT, Elained. A inteligência
emocional: as três faces da mente. Trad. de Marly Winckler. Brasília: 1997.
p. 21: “o cérebro é composto de três estruturas
diferentes, que desempenham três funções distintas: o sistema neocortical do
pensamento e da imaginação; o sistema límbico, localizado abaixo do neocórtex,
que nos permite desejar e sentir e, abaixo desses dois, uma estrutura tríplice
complexa, relacionada com o comportamento”. Com relação à memória, vinculada,
por Bergson, especificamente à alma, à consciência, a ciência vincula, de forma
clara, ao cérebro, conforme DELNERO, 1997, p. 207: “Outros elementos que devem
estar relacionados à memória no cérebro humano são os moduladores de ação
sináptica (hormônios, neuromoduladores). Da mesma forma que algumas drogas
apagam ou prejudicam a memória (como o álcool), também algumas “substâncias”
internas podem amplificá-la e gerar eventos que colaboram nas alterações de
estrutura que subjazem a ela”. Deve-se
salientar também, que a ciência pós-moderna caminha, muitas vezes, em direção
contrária ao paradigma científico tradicional, como afirma MORAES, Maria
Cândida. Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI.
Petrópolis: Vozes, 2004. p. 309: “De uma sociedade mecanicista, compartimentada
e reducionista, na qual prevalecia a objetividade, estamos caminhando em
direção ao reconhecimento da multidimensionalide do ser humano e da complexidade
que envolve a realidade individual coletiva e ecológica. A ciência pós-moderna
está ressuscitando o ser sensível, enterrado pela ciência tradicional, e
reconhecendo multidimensionalidade e
complexidade dos processos da vida. É o que a nova biologia e a física quântica
nos sinalizam. O avanço da ciência não apenas está desenterrando as dimensões
subjetivas do ser humano, ignoradas e negadas pelo paradigma tradicional, mas
também ressuscitando a natureza, o cosmo e o sagrado, e reconhecendo emoções e
os sentimentos como co-construtores da racionalidade humana. Esta nova
consciência que emerge vem promovendo uma nova maneira de perceber a realidade
e a própria dinâmica da vida”. Nesse mesmo sentido, comenta TEIXEIRA, João de
Fernandes. Filosofia e ciência cognitiva. Petrópolis: Vozes, 2004. p.
105-107 e 118: “A filosofia da mente foi fortemente abalada pelo advento da
ciência cognitiva, que estabeleceu a possibilidade de fundarmos uma ciência dos
fenômenos mentais, deixando para trás meras especulações. No século XX
tornamo-nos quase todos materialistas, enfrentando agora a difícil tarefa de relacionar as propriedades da mente
com as do cérebro ou com as de outros dispositivos materiais [...]. O
neurocientista parece ter se tornado um partidário do chamado materialismo
eliminativo [...] não precisaríamos mais falar de intenções, crenças ou
desejos, mas apenas de partes do nosso cérebro [...]. Devemos abandonar o
projeto de construir uma ciência do cérebro? Com certeza não [...] o que deve
ser abandonado, contudo, é a ingenuidade filosófica dos neurocientístas. A
ciência do cérebro deve ser uma ciência de como nós representamos nosso
cérebro. Não se trata de uma circularidade fútil, mas a recognição de que
questões epistemológicas não podem ser ignoradas por aqueles que praticam a
neurociência seriamente [...] Bergson é radical: o cérebro consegue mimetizar o
processo da consciência de forma limitada e a prova disso é a insuficiência da
linguagem ao expressar a intuição, sendo sempre incompleta e frustrante”.
[ii] Sobre sua
origem judaica, em BERGSON, 1979i., p. 6, está registrado: “Na fase final de
sua vida e de sua obra, Bergson manifestou crescente aproximação da doutrina
cristã. Sua origem judaica, entretanto, parece tê-lo impedido de converter-se
publicamente ao catolicismo, não desejando abandonar seu povo num momento em
que este vivia entre ameaças e perseguições”.
[iii]
Em 31/03/2005 o mundo noticiou a Eutanásia da norte-americana Terri Schiavo, que teve os aparelhos e tubos de
alimentação que a mantinham “viva”, subitamente, retirados em 19/03/2005. Por
seu cérebro não mais responder a certos estímulos, foi considerada em estado
vegetativo, mesmo não sendo possível saber exatamente como ela percepcionava
certas sensações. Esta importante decisão, no campo da bioética, resultou em
intenso debate sobre a questão outrora abordada por Bergson: É a consciência
apenas um produto do cérebro ou pode existir independentemente deste? Mesmo com
o avançado estado atual da ciência, decisões como estas, tendem a causar muita
polêmica, havendo discordância, inclusive, entre os próprios
especialistas. Para saber mais, acessar
o seguinte endereço eletrônico: http://forum.cifraclub.terra.com.br/forum/11/83964.
Filósofo, achei interessantíssima a sentença de Bergson: "o cérebro consegue mimetizar o processo da consciência de forma limitada e a prova disso é a insuficiência da linguagem ao expressar a intuição, sendo sempre incompleta e frustrante”, concordo e achei este um ótimo argumento para toda a discussão acima. Um ponto que merece ser mais desenvolvido e que eu já tinha lido semelhante posicionamento em "A origem da linguagem" de Eugen Rosenstock-Huessy.
ResponderExcluirAbraços sempre afetuosos.
Fábio.