1.2 A controvérsia com Pelágio
Outra importante controvérsia, de caráter mais teológico, ainda teria despertado Agostinho para a questão da eternidade, desta feita, com Pelágio, monge britânico, eunuco, natural da Irlanda, que se engajou em intenso conflito contra Agostinho, numa questão que envolvia basicamente o problema do livre-arbítrio.
Borges, sobre esse assunto, faz a seguinte afirmação:
A eternidade permaneceu como atributo da ilimitada mente de Deus, e sabe-se muito bem que as gerações de teólogos tem trabalhado essa mente a sua criação e semelhança. Nenhum estímulo tão vivo quanto o debate da predestinação. Quatrocentos anos depois da paixão e morte de Cristo, o monge inglês Pelágio incorreu no escândalo de pensar que os inocentes que morrem sem o batismo alcançam a glória. Agostinho, bispo de Hipona, o refutou com indignação aclamada por seus editores. Observou a heresia dessa doutrina: a negação de que no homem Adão todos nós homens já pecamos e perecemos, o esquecimento horrível de que essa morte se transmite de pai para filho pela geração carnal – adiante que segundo a justiça todos nós merecemos o fogo sem perdão, mas que Deus determina salvar alguns, segundo seu arbítrio[1].
Ainda sobre a importância deste debate que é, em última análise, matéria prima de Agostinho para refletir sobre a eternidae, Sproul faz a seguinte afirmação:
A questão entre Pelágio e Agostinho era clara. Não estava ofuscada por argumentos teológicos intricados, especialmente no começo. Nunca houve, talvez, uma outra crise de igual importância na história da igreja na qual os oponentes tenham expressado os princípios em debate tão clara e abstratamente. Somente a disputa Ariana pode ser comparada a ela[2].
Para Pelágio, diferentemente de Agostinho, o homem continuava habilitado, mesmo depois da queda, a fazer o bem se assim desejasse e que não se fazia necessário uma assistência especial da graça de Deus para que o ser humano o obedecesse. Para Agostinho, entretanto, esta assistência da graça era essencial e indispensável, sendo outorgada por Deus, na eternidade.
Para combater as idéias de Pelágio, consideradas heréticas, Agostinho escreve “A Graça”, uma obra densa e de extrema lucidez, onde retoma a questão do Livre Arbítrio tendo, inclusive, modificado seu entendimento inicial sobre o assunto, além de tratar também sobre a própria doutrina da Graça e sobre Predestinação. Ao abordar esses temas, obviamente Agostinho aborda também a questão da Eternidade.
Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). Pois, se fossem eleitos porque creram, tê-lo-iam escolhido antes ao crer nele e assim merecerem ser eleitos. Evita, porém, esta interpretação aquele que diz: Não fostes vós que me escolhestes [...]. Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo?(Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Conseqüentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou os que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim[3].
Este debate tem sido atualizado ao longo da história do cristianismo: No século XVI foi revivido de forma intensa pelos reformadores Lutero e Calvino, além de outros, que subscreviam a posição agostiniana, enquanto Erasmo de Roterdam, além de outros, à de Pelágio. No século XVII mais uma vez o debate reaparece, quando um dos mais entusiasmados seguidores de Pelágio, o holandês Thiago Armínius retoma a questão. Para combatê-lo, os calvinistas, reunidos em concílio, formularam um documento que ficou conhecido como “Os Cânones de Dort”, reafirmando, como crença oficial da Igreja Reformada, a posição agostiniana. No século XIX o debate toma força novamente, desta vez com os puritanos ingleses, que formularam a “Confissão de Fé de Westminster”, para ratificar a posição Calvino e, conseqüentemente, de Agostinho. Na contemporaneidade o debate ainda continua de forma intensa, atualizado, principalmente, por calvinistas e arminianos.
O sétimo dia, porém, não tem tarde nem repouso, porque o santificaste para permanecer eternamente. Aquele descanso, com que repousaste no sétimo dia depois de tantas obras muito boas – que realizaste sem cansaço – é um anúncio que nos vem pela palavra da tua escritura: também nós, descansaremos em ti, no sábado da vida eterna, depois dos nossos trabalhos, que são bons porque os concedestes a nós[4].
Como vimos, tanto a controvérsia com os maniqueus como a controvérsia com Pelágio, foram de grande importância na construção teoria do tempo de Agostinho, e, de forma muito particular, para a questão da eternidade. Esses debates provocaram e estimularam sua mente, fazendo-o refletir seriamente sobre o problema.
Contudo, uma das mais marcantes experiências místicas de esperança da continuação da vida da consciência após a morte física que Agostinho desfrutou foi, certamente, na última conversa com sua mãe – Mônica –, ao aproximar-se o dia da sua morte. Relata Agostinho que, depois de uma cansativa viagem, conversava com sua mãe, olhando para o futuro, sobre “qual seria a vida eterna dos santos”. Numa experiência mística, chegando ao “íntimo de suas almas”, por “intuição”, por um momento pensaram ter alcançado fagulhas da vida por vir; e, como afirma, naquele momento de contemplação, “o mundo, com todos os seus prazeres, perdia para nós todo valor e minha mãe me disse: “Meu filho, nada mais me atrai nesta vida [...] Deus me satisfez amplamente, porque te vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo”[5].
Esse diálogo é de fundamental importância para termos noção da esperança que Agostinho alimentava de uma vida além de sua vida física; e não somente isso, mas também de como a considerava, analogamente à sua mãe, mais importante e mais pujante que a vida terrena. Agostinho tinha plena convicção de que sua mãe havia sido predestinada[6], não por merecimento, e que essa convicção, baseada em seus frutos, dava-lhe condições plenas de afirmar que “ela não responderá que nada deve, por medo de ser convencida do contrário [...], mas, ela responderá que sua dívida lhe foi perdoada por aquele a quem ninguém pode restituir o que ele pagou por nós sem ser devedor”[7].
Tomado de uma perplexidade gratificante, pelo testemunho corajoso de sua mãe ao ser perguntada se não tinha medo de deixar seu corpo longe de sua terra natal, ao que respondeu, segundo seu próprio relato, que “para Deus nada é longe, nem devo temer que, no fim dos séculos, Ele não reconheça o lugar onde me ressuscitará”[8]. Tendo, finalmente, falecido sua mãe, refletiu e chegou à conclusão de que:
De fato não parecia justo celebrar o funeral com lamentos e choros, pois essas demonstrações servem usualmente para deplorar a morte como infelicidade ou como aniquilamento total, ao passo que essa morte não era uma desgraça, nem para sempre[9].
A clareza e a convicção de uma “vida eterna” após a vida física inundara a mente de Agostinho, de forma definitiva, fazendo-o produzir um belíssimo salmo com o qual finalizamos sua compreensão de eternidade:
Que se lembrem com piedosa emoção dos que foram meus pais nesta vida transitória [...] Que se lembrem dos meus concidadãos na eterna Jerusalém, pela qual suspira teu povo peregrino desde a partida da pátria até o regresso[10].
[1] BORGES. Jorge Luis. História da eternidade. 4. ed. Trad. de Carmem C.Lima. São Paulo: Globo, 1991.p.2
[2] SPROUL, R.C. Sola gratia: a controvérsia sobre o livre arbítrio na história. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 31
[3] AGOSTINHO. A graça II . São Paulo: Editora Paulus, 1999, p.194,195.
[6] Esta é uma doutrina característica de Agostinho. Ele a aborda densamente nos dois volumes de seu tratado sobre a graça. Em síntese, esta doutrina é uma conseqüência lógica de sua antropologia: com o pecado, o homem tornou-se tão corrompido quanto poderia ter sido, isto é, teve sua “essência” totalmente corrompida, não restando, neste homem, bem algum capaz de habilitá-lo a aproximar-se de Deus novamente. A antropologia Agostiniana influenciou profundamente o pensamento protestante reformado, dando origem à doutrina da “depravação total do homem”. Não sendo este homem capaz de, por sua própria vontade, voltar-se para Deus, por estar morto espiritualmente, como conseqüência do pecado, resta-lhe, como única alternativa, contar com a graça de Deus. Antes da fundação do mundo (por isso o termo predestinação), Deus escolheu, graciosamente, alguns para reabilitar (do seu estado de depravação total) e salvar suas almas.
[10] Ibid., XIII, 13.37.