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domingo, 18 de outubro de 2015

A QUESTÃO DA ETERNIDADE EM AGOSTINHO DE HIPONA – PARTE 11/11


Cremos que já ficou por demais demonstrado que a controvérsia entre Agostinho e Pelágio o levou a voltar mais uma vez à questão da eternidade de Deus e não somente isto, mas também a um claro conceito de vida para-além da vida, isto é, da continuidade da duração da consciência do homem após sua desintegração física. Para ele, por decreto, a vida consciente continua depois da morte física. ontudo, julgamos mais uma vez oportuno tomar testemunho dos dois mais importantes documentos agostiniano/calvinista. Primeiro para efeito comparativo e depois para termos clareza da dimensão do legado da Antropologia agostiniana e de suas sérias conseqüências na história. O primeiro testemunho data de 1618, os Cânones de Dort:

Deus nesta vida concede a fé a alguns enquanto não concede a outros. Isto procede do eterno decreto de Deus. Porque as Escrituras dizem que ele faz estas coisas conhecidas desde séculos e que ele faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. De acordo com este decreto, ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por duros que sejam, e os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo seu justo juízo, ele deixa os não‑eleitos em sua própria maldade e dureza de coração. E aqui especialmente nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo justa distinção entre homens que estão sob a mesma condição de perdição. Este é o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus. Ainda que os homens perversos, impuros e instáveis o deturpem, para sua própria perdição, ele dá um inexprimível conforto para as pessoas santas e tementes a Deus. Esta eleição é o imutável propósito de Deus, pelo qual ele, antes da fundação do mundo, escolheu um número grande e definido de pessoas para a salvação, por graça pura. Estas são escolhidas de acordo com o soberano bom propósito de sua vontade, dentre todo o gênero humano, decaído, por sua própria culpa, de sua integridade original para o pecado e a perdição. Os eleitos não são melhores ou mais dignos que os outros, mas envolvidos na mesma miséria. São escolhidos, porém, em Cristo, a quem Deus constituiu, desde a eternidade, Mediador e Cabeça de todos os eleitos e fundamento da salvação. E, para salvá‑los por Cristo, Deus decidiu dá‑los a ele e efetivamente chamá‑los e atrai‑los à sua comunhão por meio da sua Palavra e de seu Espírito. Em outras palavras, ele decidiu dar‑lhes verdadeira fé em Cristo, justificá‑los, santificá‑los, e depois, tendo‑se guardado poderosamente na comunhão de seu Filho, finalmente glorificá‑los. Deus fez isto para a demonstração de sua misericórdia e para o louvor da riqueza de sua gloriosa graça. Como está escrito “assim como nos escolheu nele, antes do fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado”. E em outro lugar: E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também, glorificou[1].

O segundo documento data de 1889, “confissão de Westmisnter”:

Pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para a morte eterna. Esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são particular e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode ser nem aumentado nem diminuído.Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e beneplácito da sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado, escolheu em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida; para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu de sua mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa. Assim como Deus destinou os eleitos para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre propósito da sua vontade, preordenou todos os meios conducentes a esse fim; os que, portanto, são eleitos, achando-se caídos em Adão, são remidos por Cristo, são eficazmente chamados para a fé em Cristo pelo seu Espírito, que opera no tempo devido, são justificados, adotados, santificados e guardados pelo seu poder por meio da fé salvadora. Além dos eleitos não há nenhum outro que seja remido por Cristo, eficazmente chamado, justificado, adotado, santificado e salvo. Segundo o inescrutável conselho da sua própria vontade, pela qual ele concede ou recusa misericórdia, como lhe apraz, para a glória do seu soberano poder sobre as suas criaturas, o resto dos homens, para louvor da sua gloriosa justiça, foi Deus servido não contemplar e ordená-los para a desonra e ira por causa dos seus pecados[2].






[1] DORT, 1996, p.18.19
[2] WESTMINSTER, 1996, p.5

domingo, 4 de outubro de 2015

A QUESTÃO DA ETERNIDADE EM AGOSTINHO DE HIPONA – PARTE 10/11


A conseqüência lógica da antropologia agostiniana: a predestinação: um retorno à sua noção de eternidade

Para Agostinho, sendo o homem incapaz de qualquer bem por si só,  estando com sua natureza corrompida e totalmente depravado, resta-lhe tão somente esperar o favor não merecido da Graça Divina. A partir desse ponto, e como conseqüência lógica e racional de sua Antropologia,   ele desenvolve seu conceito de Predestinação, que nos remeterá de volta, necessariamente, à eternidade, uma vez que é lá que nasce o decreto eterno da eleição. A predestinação ou eleição agostiniana, muito embora tenha suas bases firmadas em escritos paulinos, é a alternativa encontrada por Agostinho para resolver o problema da natureza decaída do homem. Ora, se o homem, segundo ele, não possui mais as condições para, por suas próprias forças, fazer qualquer bem que concorra para a reabilitação de sua própria natureza e considerando ainda que a revelação escriturística o fazia entender que nem todos, por mais que tentassem, alcançariam tal reabilitação, Agostinho avança, para a única conclusão cabível como desfecho de sua Antropologia, para a única alternativa de reabilitação da alma decaída, isto é, a Predestinação.

Agostinho chega a conclusão que, na eternidade, Deus teria escolhido alguns homens para agraciá-los com essa graça salvífica, não por merecimento, pois, por merecimento todos deveriam, justamente, perecer eternamente na condição decaída, como ele mesmo afirma:

Esses testemunhos demonstram a concessão da graça de Deus não em atenção aos nossos merecimentos. As vezes verifica-se a concessão não somente faltando merecimentos mas existindo desmerecimentos prévios[1] .

No segundo volume de sua obra “A graça” Agostinho desenvolve de forma clara e inequívoca, não somente as bases de sua soterologia, mas, sobretudo, o desfecho lógico de sua antropologia. Diz ele: 

Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). Pois, se fossem eleitos porque creram, tê-lo-iam escolhido antes ao crer nele e assim merecerem ser eleitos. Evita, porém, esta interpretação aquele que diz: Não fostes vós que me escolhestes. não há dúvida que eles também o escolheram, quando nele acreditaram. Daí o ter ele dito: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi, não porque não o escolheram para ser escolhidos, mas para que o escolhessem, ele os escolheu. Isso porque a misericórdia se lhes antecipou (Sl 53:11) segundo a graça, não segundo uma dívida. Portanto, retirou-os do mundo quando ele vivia no mundo, mas já eram eleitos em si mesmos antes da criação do mundo. Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo?(Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Conseqüentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou os que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. Diz o apóstolo Tiago: Não escolheu Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam? (Tg 2:5). Portanto, ao escolher, fá-los ricos na fé, assim como herdeiros do Reino. Pois, com razão, se diz que Deus escolheu nos que crêem aquilo pelo qual os escolheu para neles realizá-lo. Pergunto: quem ouvir o Senhor, que diz: Não fostes vós que me escolhestes,  mas fui eu que vos escolhi, terá atrevimento de dizer que os homens têm fé para ser escolhidos, quando a verdade é que são escolhidos para crer? A não ser que se ponham contra a sentença da Verdade e digam que escolheram antes a Cristo aqueles aos quais ele disse: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi[2].




[1] AGOSTINHO. A Graça II. Editora Paulus, 1999. VI.13, Pág, 37

[2] GRAÇA II, 1999. p. 194, 195

domingo, 27 de setembro de 2015

A QUESTÃO DA ETERNIDADE EM AGOSTINHO DE HIPONA – PARTE 9/11


A antropologia agostiniana em contraponto com os pelagianos - Continuação


A antropologia Agostiniana tem sido ainda bastante estudada, sobretudo pelos calvinistas, e tem sido considerada como um ponto fundamental  para a  soteriologia, de forma que não é errado afirmar que a visão  agostiniana/calvinista da depravação total do homem é o pilar principal do Pensamento Reformado, de forma que dele depende a compreensão de todo o resto do sofisticado sistema filosófico/teológico desenvolvido por Agostinho e seus sucessores.

A “Confissão de Westminster”, formulada em 1889, pelos puritanos ingleses, subscreve integralmente a antropologia Agostiniana:


Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza.  O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu pr6prio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso. Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza. O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder[1].

Outro importante documento agostiniano/calvinista, intitulado “contra o arminianismo” , formulado em 1618, no sínodo de Dort, para combater  um dos mais entusiasmado seguidores de Pelágio, o holandês Thiago Armínius, mais uma vez  subscreveu integralmente a Antopologia  Agostiniana:

No princípio o homem foi criado à imagem de Deus. Foi adornado em seu entendimento com o verdadeiro e salutar conhecimento de Deus e de todas as coisas espirituais. Sua vontade e seu coração eram retos, todos os seus afetos, puros; portanto, era o homem completamente santo. Mas, desviando-se de Deus [...] pela sua livre vontade, ele privou desses dons excelentes. Em lugar disso trouxe sobre si cegueira, trevas terríveis, leviano e perverso juízo em seu entendimento; malícia, rebeldia e dureza em sua vontade e em seu coração; e ainda impureza em todos os seus afetos[2].

Também devemos citar aqui o testemunho de um importante monge agostiniano do século de XVI, Martinho Lutero, que em reação à retomada dos ensinamentos pelagianos, em relação ao livre-arbítrio, por Erasmo de Rotterdam, escreveu sua obra “A escravidão da vontade”, que é uma contundente crítica aos ensinamentos pelagianos no melhor estilo agostiniano; diz ele:

Erasmo [...] você assevera que o “livre-arbítrio” é a capacidade que a vontade humana tem, por si mesma, de decidir [...] Os pelagianos também fizeram isso. Mas você os ultrapassa! [...] Prefiro até mesmo o ensinamento de alguns dos antigos filósofos aos seus. Eles diziam que um homem entregue a si mesmo só faria o errado. O homem só poderia escolher o bom com a ajuda da graça divina. Eles diziam que os homens são livres para decair, mas que precisam de ajuda para elevarem-se! Porém, é motivo de riso chamar a isso de “livre-arbítrio”. Com base em tais conceitos, eu poderia afirmar que uma pedra tem “livre-arbítrio”, pois só pode cair, a menos que seja erguida por alguém! O ensino daqueles filósofos, põem, ainda é melhor do que o seu. A sua pedra, Erasmo, pode escolher se sobe ou desce![3].

Como já dissemos, esta controvérsia com os pelagianos foi de suma importância. Sua discórdia com Pelágio tem sido atualizada na História por várias pessoas e por diversas vezes, a exemplo de Erasmo e Lutero, Calvinistas e Arminianos.

Assim diferem radicalmente as antropologias de Pelágio e de Agostinho, e, conseqüentemente, sua éticas e doutrina da salvação. Agostinho não vai contra a natureza. Pelágio não vai contra a graça. Pelágio escreveu seu livro para defender a força, os dotes das condições naturais do homem. Agostinho para defender a graça, que não vai contra a natureza, mas a restaura, a salva demonstrando que, para não tornar vã a cruz de Cristo, é preciso defender não só a natureza, mas também a graça, que cura e liberta a natureza [...] Dessa polêmica nasceram as doutrinas ocidentais do pecado original, da graça, da predestinação e da satisfação vicária[4].



[1]WESTMINSTER, 1996, p.11
[2] OS CÂNONES DE DORT. Contra o Arminianismo. São Paulo: Ed.Cultura Cristã, 1996, p.34.
[3] LUTERO. Fragmentos. In: Nascido escravo. Trad.Born Slaves. São José dos Campos: Fiel, 1988, p.41
[4] Ibid., p.108, 109

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