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terça-feira, 11 de abril de 2023

A FORMAÇÃO DA DEMOCRACIA MODERNA: A contribuição das ideias religiosas dos puritanos no século XVII – DEFESA DA TESE 3/6

 

ARGUMENTAÇÃO:

No primeiro capítulo abordamos sobre O MOVIMENTO PURITANO EM SEU CONTEXTO HISTÓRICO, SOCIAL E RELIGIOSO

Iniciamos o capítulo tratando sobre a relação do puritanismo com a monarquia inglesa, tanto da dinastia Tudor quando da dinastia Stuart. Casado com Catarina de Aragão, uma de suas seis esposas, o rei Henrique VIII, que reinou entre 1509 e 1649, anos mais tarde, conheceu Mary Boleyn que veio a tornar-se “amante do Rei” (CHURCHILL, 2009, p.149). Depois, “Henry enamorou-se de Anne Boleyn” (Ibid., 151), irmã de Mary.

Juntos, Henry e Anne trataram de enviar um embaixador real especial à presença do Papa Clemente VII [...], a fim de obter não somente a anulação do casamento do Rei, mas a autorização para ele se casar de novo [...] a recusa seguiu-se” (Ibid., p.152).

O “Rei resolveu expressar o seu desagrado com o Papa” (Ibid., p.153), rompendo com a Sé romana, por esses motivos espúrios, além de outros, dentre eles os de ordem financeira, porque ele via nas posses da igreja uma saída para sua falta de recursos. Assim nasceu a igreja Anglicana, uma igreja estatal, controlada pelo rei e que viria a ser o palco de grandes disputas acerca do sistema de governo eclesiástico envolvendo os Puritanos. Tecnicamente, o termo “puritano” ainda não havia sido criado, mas isso não era importante para William Tyndale (1495-1536), que em 1524, portanto, sob o reinado de Henrique VIII, “tomou a importante decisão de desafiar as leis que proibiam a tradução da Bíblia e impediam que os inglese deixassem o país sem permissão” (HULSE, 2000, p.37). Tyndale, ligado à igreja da Inglaterra, assim como os outros puritanos, tinha o “espírito de um verdadeiro puritano” e deu o tom do que seria essa relação pouco amistosa com a monarquia. Ainda Sob Henrique VIII, Tyndale foi estrangulado por uma corrente e teve seu corpo explodido e queimado.

Destacamos também o reinado de Mary (1553-1558), “apelidada de “bloody Mary” (Mary sanguinária) – devido sua crueldade” (HULSE, 2004, p.31), filha da primeira esposa de Henrique VIII, Catarina de Aragão, era uma fervorosa católica, tal qual sua mãe. Ela “tornou-se odiosa aos olhos dos protestantes, conhecida como a Rainha Sanguinária que martirizou os seus súditos mais ilustres” (CHURCHILL, 2009, p.168), dentre eles muitos puritanos. Tão logo esteve segura no trono, a Rainha Mary “começou a realizar o desejo de sua vida: a restauração da comunhão com Roma” (CHURCHILL, 2009, p.167). Fui um tempo de intensos conflitos com os puritanos, que não admitiam a volta da igreja inglesa, que já não consideravam uma igreja completamente reformada, à comunhão com Roma.

A rainha Mary teve sua saúde abalada e “em novembro de 1558, ela morreu” (CHURCHILL, 2009, p.169). Em seu lugar, herda o trono Elizabeth (1558-1603). A rainha Elizabeth “foi criada na religião protestante” (Ibid., p.171), diferente de sua antecessora. Sua administração foi considerada “moderadamente protestante” (HULSE, 2004, p.45). Isso fez com que os puritanos exilados sob Mary entendessem que já era hora de voltar à Inglaterra e, assim, empreender uma longa jornada que visava completar a Reforma na igreja oficial, o que não poderia ocorrer sem afetar o regime de governo eclesiástico vigente, porque era contrário aos preceitos reformados.

Winston Leonard Spencer-Churchill, em sua importante obra “Uma história dos povos de língua inglesa” dá o tom do que representaria o retorno desses puritanos, tanto para a coroa quanto para o clero anglicano. Diz ele:

A igreja se ajustava bem com a monarquia, até mesmo com o absolutismo, mas o calvinismo, à medida que se espalhou pela Europa, tornou-se um instrumento de dissolução e interrupção [...] da continuidade histórica. Com o retorno e ressurgimento dos exilados que haviam fugido de Mary Tudor, um elemento explosivo alojou-se na igreja e no estado ingleses que, ao fim e ao cabo, haveria de estilhaçar ambos (2009, p.176). 

A ideia de certo “elemento explosivo” alojado no interior da igreja e no interior do Estado é muito feliz, porque antecipa o entendimento de como foram fomentados os conflitos que eclodiriam a partir de 1640, que ficariam conhecidos como “Revolução Puritana”. De fato, os puritanos elegeram essas duas “frentes de batalha” para “guerrear”: contra a igreja e contra o Estado. Mas, é importante ficar claro que o foco principal sempre foi a implementação de uma Reforma mais profunda na igreja oficial da Inglaterra. Como se tratava de uma igreja estatal, daí a necessidade de levar a “batalha” para o campo político. Elisabeth marcou o fim da dinastia Tudor e o início da dinastia Sturart, com Jaime I e Carlos I, que terão protagonismo no capítulo três da nossa tese. O termo “puritano” foi cunhado sob Elizabeth. Também sob seu reinado é registrado que entra “pela primeira vez na História da Inglaterra o partido chamado puritano, que teria papel ponderável nos cem anos subsequentes” (CHURCHILL., p.172).

Por fim, depois da análise da opinião de vários estudiosos do movimento puritano, acerca do que foi o puritanismo, destacamos a necessidade premente de responder à seguinte pergunta: o que faz de um puritano, puritano? E nos pomos a elencar algumas características principais, que sintetizam a definição dos maiores estudiosos do movimento puritano, quais sejam: a) apego irrestrito às Escrituras Sagradas, fazendo que que se tornasse sua “única fonte de fé e de prática, fato que trouxe muita perseguição ao puritanismo b) alinhamento indispensável à sistematização teológico-doutrinária calvinista; c) eram ligados à igreja anglicana, nos séculos XVI e XVII. Encerramos lembrando que o termo puritano não era auto aplicado, com se eles se achassem mais puros que as outras pessoas. Pelo contrário, era uma designação pejorativa atribuída pelos desafetos dos puritanos.

Continua na próxima postagem - 4/6 

domingo, 9 de abril de 2023

A FORMAÇÃO DA DEMOCRACIA MODERNA: A contribuição das ideias religiosas dos puritanos no século XVII – DEFESA DA TESE 2/6

 

Existe uma forma ideal ou perfeita de governo? Baseados na concepção cristã de um Deus perfeito, que exerce seu governo como um Rei Soberano, como também criam os Puritanos, a resposta não poderia ser outra senão “Monarquia Absolutista”. Afinal, que outra forma de governo poderia ser utilizada por um Governante que reuni em seu ser toda autoridade, todo poder, toda benevolência, toda sabedoria, além de muitos outros atributos, comunicáveis e não comunicáveis? “Nos céus estabeleceu o Senhor o seu trono, e o seu reino domina sobre tudo”, diz o salmista. Certamente esse governo não é democrático. Deus não divide a fonte de Sua Soberania com ninguém.

O problema dessa forma “perfeita” de governo é que ela requer um “governante igualmente perfeito”. Para uma forma de governo “ideal” ou “perfeita”, um governante igualmente ideal e perfeito. Portanto, ela não é a mais adequada quando se trata de homens governando homens.

Jean Jaques Rousseau, em “O Contrato Social”, publicado originalmente em 1762, faz uma afirmação interessante sobre a relação “governo perfeito versus governante perfeito”. Diz ele: “se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente” (ROUSSEAU, 2018, p. 90).

Tendo tratado da forma “ideal”, “perfeita” de governo, agora ampliamos a abrangência da pergunta inicial:

Existe uma forma mais adequada para que homens, que não constituem “um povo de deuses”, no dizer hipotético de Rousseau, que tinha em mente a democracia direta dos gregos, governem outros homens?

Para a maioria dos puritanos mais influentes, que eram de convicção presbiteriana quanto ao governo eclesiástico, Deus, sabedor da imperfeição do homem, numa realidade pós-queda e do perigo de dar-lhe ou mesmo dele tomar de assalto o “poder absoluto” sobre outros homens, estabeleceu, de acordo com o entendimento deles, uma forma de governo, inicialmente em sua igreja, que, de alguma forma, os protegesse do poder de líderes religiosos tiranos e déspotas. Essa forma de governo é o “governo representativo”, que influenciou, como defendemos, a formatação do governo civil chamado de “democracia representativa” ou “democracia moderna”.

Além dessas, outras perguntas nos inquietaram ao longo da construção de nossa tese: Como ideias e concepções religiosas, que a priori deveriam ficar circunscritas ao chamado “mundo espiritual”, acabam por interferir, consequentemente, no “mundo não espiritual”? É possível um modelo de governo eclesiástico ter influenciado a criação de um modelo de governo não eclesiástico? No caso concreto, a problematização final:  até que ponto as concepções religiosas dos puritanos acabaram por interferir e influenciar a sociedade, especialmente na política, contribuindo para a formação de um “novo” regime de governo civil?

A partir desses problemas levantados, à essa altura, nossa intuição inicial já havia virado hipótese: “o conceito de governo eclesiástico defendido por uma parcela muito influente do puritanismo foi um fator importante que contribuiu para a formação desse “novíssimo” regime de governo secular, sem precedentes práticos, que ficou conhecido como “democracia moderna” ou “democracia representativa”.

Esse binômio “Religião e Política” tem despertado pesquisas no mundo inteiro. No Brasil, por exemplo, só em 2021, considerando todas as áreas, foram produzidas 77.570 pesquisas versando sobre essa relação, tendo sido 44.588 dissertações de mestrado e 20.300 teses de doutorado, segundo o catálogo de teses da Capes. Isso demonstra não só que há, de fato, essa, talvez, estranha aproximação entre religião e política, mas também que cada vez mais a ciência está querendo compreender o que há por trás desse fenômeno.

Já o movimento Puritano não tem sido muito estudado na academia; muito menos ainda sua contribuição à formação da democracia moderna. Apenas 28 trabalhos científicos que abordam o puritanismo ou temas correlatos podem ser encontrados nessa mesma plataforma, todos anteriores a 2018, sendo 21 dissertações de mestrado e 6 teses de doutorado, geralmente sobre algum aspecto teológico. Isso, de certa forma, é positivo e pode indicar o aspecto original ou de reduzida abordagem da nossa tese.

ELUCIDAÇÃO

A maioria dos historiadores e pesquisadores do tema têm uma percepção mais ou menos hegemônica no que diz respeito ao surgimento da chamada “democracia moderna”.

Sempre apontam, basicamente, três momentos que poderiam indicar sua origem. São eles: a) As Revoluções Inglesas, especialmente a Puritana, do século XVII; b) Revolução francesa, no século XVIII e c) Independência dos Estados Unidos da América do Norte, também no século XVIII.

Defendemos que a “Democracia Representativa”, também chamada de “Democracia Moderna, Indireta ou Liberal” encontra seu nascimento prático e definitivo na Inglaterra do século XVII, cenário da Revolução Puritana (1640-1649) e, portanto, de intensa atuação política dos Puritanos na Câmara dos Comuns do Parlamento inglês, ainda que essa “gestação” tenha recebido diversas contribuições ao longo da história, dos Hebreus, de Roma, de Veneza e de nomes como o de Marsílio de Pádua, que viveu entre os séculos XIII e XIV.

Para defender nossa tese, cujo TEMA é “A FORMAÇÃO DA DEMOCRACIA MODERNA: a contribuição das ideias religiosas dos puritanos no século XVII”, foi preciso construir o argumento a partir de diversos objetivos específicos que foram transformados em quatro capítulos, que passaremos a abordar, aqui, de forma sintética, por conta da delimitação de tempo.

Continua na próxima postagem - 3/6 

sexta-feira, 7 de abril de 2023

A FORMAÇÃO DA DEMOCRACIA MODERNA: A contribuição das ideias religiosas dos puritanos no século XVII – DEFESA DA TESE 1/6

 

INTRODUÇÃO

Penso que cabe investir algum tempo para relembrar a trajetória que nos conduziu até à produção final de nossa tese.

Nosso antigo interesse pelo calvinismo, inicialmente apenas pela teologia, como ocorre, no Brasil, com a maioria absoluta dos simpatizantes das ideias de Calvino, nos levou a Max Weber e à sua consagrada relação entre a origem do “espírito do capitalismo” e o “calvinismo”, demonstrado em sua mais famosa obra “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, publicada originalmente em 1904. Com esse novo conhecimento agregado, estava estabelecido que os efeitos psicológicos da doutrina da eleição haviam sido um fator influenciador vigoroso de relações econômicas; uma novidade considerando que até então se acreditava, especialmente por conta do Marxismo, que mudanças econômicas possuíam como causas apenas fatores econômicos.

De Weber, veio também o referencial teórico que norteou nossa tese, com o conceito de “desencantamento” ou “desmagicização” do mundo, como diz Wolfgang em sua obra “O desencantamento do mundo”:

Encantamento significa magicização do mundo, então desencantamento significa sua desmagicização. Esse é o entendimento histórico-religioso sobre desencantamento do mundo” (WOLFGANG, 2014, p. 40).

Não é exagero afirmar que o puritanismo, ao lado da ciência moderna, “Jerusalém e Atenas” (Ibid., p. 44), no dizer de Wolfgang, pôs um ponto final no “encantamento do mundo” produzido, principalmente, pela “magia” dos sacramentos católicos, especialmente o da transubstanciação, como afirma Sell, na obra “Max Weber e a racionalização da vida no mundo”: “a desmagificação especificamente puritana é, estritamente falando, des-sacramentalização da prática religiosa” (SELL, 2013, p. 245).

A partir desses pressupostos weberiano fomos instigados a pesquisar outras possibilidades de influência do calvinismo para além da teologia. Assim, chegamos à política.

A primeira vez que esse binômio “política e calvinismo” se nos foi apresentado foi por intermédio da obra de Abraham Kuyper (1837-1920), um calvinista que atuou como Primeiro-ministro da Holanda, de 1901 a 1905 e que defendia o calvinismo como um verdadeiro sistema de vida; como uma cosmovisão que deveria fazer frente ao modernismo, influenciando todas as áreas da vida.

Com a atenção voltada para identificar qualquer aspecto da política que pudesse ter alguma ligação com o calvinismo chegamos, inevitavelmente, a atuação política dos puritanos, calvinistas ingleses do século XVII.

Algumas leituras na área das ciências políticas, aliadas ao conhecimento prévio da teologia puritana, sobretudo da eclesiologia calvinista/reformada, foram suficientes para intuirmos que a atuação política dos puritanos poderia ter uma relevância muitíssimo maior que a simples ocupação de cargos políticos, como era nossa expectativa inicial.

A cada leitura as palavras “puritanos” e “democracia” apareciam de forma recorrente no mesmo cenário. Esse era um fato curioso porque a democracia era uma forma de governo que havia estado ativa até, no máximo, o século V a.C, em Atenas; a chamada Democracia Direta ou Democracia grega. Depois disso ela, essa Democracia direta, simplesmente sumiu; foi completamente descontinuada, dando lugar à monarquias absolutistas e outros tipos de despotismos. Com o surgimento do Estado Moderno, com extensões cada vez maiores, a chamada Democracia direta, dos gregos, que já estava descontinuada, tornou-se absolutamente inviável.

Apesar disso, as referências “democracia” e “puritanos” continuavam a aparecer em vários textos. Contudo, notamos que uma mudança substancial havia acontecido: A democracia que aparecia nas leituras não era mais a mesma. Não se falava mais na “Antiga” Democracia grega, direta, exercida por todo o povo simultaneamente. Antes, uma adaptação, uma modificação no “DNA” da democracia havia sido introduzida. O conceito de “povo no poder”, “poder que emana do povo”, dos gregos, havia sido preservado. Porém, esse poder, agora, era exercido por meio de “representantes eleitos”.

Finalmente, tínhamos, no mesmo cenário de nossas leituras, as palavras: “democracia”, “representantes eleitos” e “puritanos”. Diversas citações de renomados pesquisadores da história da Inglaterra e de suas importantes revoluções do século XVII, a exemplo de Christopher Hill, David Hume e tantos outros, começaram a “saltar aos nossos olhos”, indicando que estávamos prestes a desvelar um dos motivos que impulsionaram o nascimento ou a formatação de uma novidade sem precedentes práticos no âmbito da política, especificamente quanto à forma de governo civil.

À essa altura de nossa “peregrinação”, palavra utilizada aqui para fazer referência à famosa obra “O Peregrino”, do puritano John Bunyan (1628-1688), publicado originalmente em 1678, por textos antigos e recentes, algumas perguntas começaram a surgir.

Continua na próxima postagem - 2/6

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