Jesus, certa vez, disse algo que é muito pertinente relembrarmos num
momento de comemoração de mais um ano de vida, especialmente num contexto de festa
de aniversário. Disse Ele: “Qual de vós, por ansioso que esteja, pode
acrescentar um côvado ao curso de sua vida”? (Lucas 12:25). Côvado é uma
unidade de medida que equivale a aproximadamente 45 centímetros. O argumento
irrefutável nos lembra que nenhum de nós; absolutamente ninguém, tem a
capacidade de alongar, nem mesmo por alguns centímetros, a caminhada que nos
está proposta. Alguém consciente pode negar isso? Nem mesmo os mais abastados
com suas muitas riquezas podem decidir por viver mais um pouco, tendo chegado o
limite do curso de sua vida. Os poderosos não poderão usar sua recorrente
arrogância para conquistarem mais tempo. A fé dos religiosos também não os ajudará a merecerem tamanho benefício. Os pobres também não poderão usar seu sofrimento momentâneo como
estratégia de convencimento para prolongamento de suas vidas. O fim da estrada
é absolutamente democrático e irrevogável. Essa reflexão perpassa uma questão filosófica fundamental e basilar: afinal, “que
é o homem”? É a pergunta feita também pelo Salmista; respondendo ele mesmo: “ O homem é como um sopro; os seus dias, como a sombra
que passa (Salmos 144:3-4). E ainda outro salmista afirma: “Os dias da nossa
vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor
deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos” (Salmo
90:10). É o que somos: “humanos; demasiadamente humanos”; seres cujo DNA
está impregnado de transitoriedade e dependência, face à Eterna e Imutável existência de Deus, como ainda afirma o Salmista: “Antes que os montes nascessem e se
formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus” (Salmo
90:2). Somos loucos em não atentarmos para tão grande diferença entre Ele e nós. Parabenizar, ser parabenizado ou ainda parabenizar-se por mais um ano de vida, não significaria, em última análise, entender que o continuar vivo, de alguma forma, depende ou dependeu de nós? Diante do exposto acima, não fica sem sentido, em qualquer língua, as famosas
palavras cantadas “Parabéns pra você ou Happy Birthday to You”? Antes, não
seria mais adequado, à ocasião, ações de Graças a Deus, único autor e
preservador da vida? Façamos nossas, pois, as palavras de Moisés, em seu salmo solitário:
“Ensina-nos a contar os nossos dias, para que
alcancemos coração sábio” e ainda: “Sacia-nos de manhã com a tua benignidade,
para que cantemos de júbilo e nos alegremos todos os nossos dias” (Salmo
90:12,14).
sexta-feira, 8 de junho de 2012
segunda-feira, 21 de maio de 2012
A IGNORÂNCIA É FELICIDADE
A ignorância é Felicidade! Frase aparentemente inocente e despretensiosa,
mas que está cheia de significados e implicações filosóficas. Ela aparece no
filme Matrix, numa importante discussão acerca da verdade. Parece supor alguém
que conhece os dois lados da moeda: a ignorância e o conhecimento. Alguém que
trilhou caminhos bem definidos para alcançar o alvo-conhecimento e, agora,
olhando para trás, chega à conclusão que era mais feliz no tempo da ignorância.
“Melhor tivesse ficado sem conhecer a verdade, na ignorância”, chega-se a afirmar.
De fato, conhecer, muitas vezes, é
atormentador.
Paulo, Apóstolo de Jesus
Cristo, sentiu na pele o peso que o
conhecimento trás ao homem. Diz ele: “eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não
teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás” (Romanos
7:7).
Numa elucubração anacrônica,
imaginemos Paulo assistindo Matrix. Será que ele concordaria com a célebre
frase “Ignorância é felicidade”?
A.W.Pink comentando essa
luta interior que o apóstolo Paulo travava com sua própria
consciência-conhecedora, faz a seguinte afirmação:
O
reconhecimento dessa guerra em seu íntimo e o fato de que se tornou cativo ao
pecado levam o crente a exclamar: “Desventurado homem que sou!” Esse é um
clamor produzido por uma profunda compreensão da habitação do pecado. É a
confissão de alguém que reconhece não haver bem algum em seu homem natural. É o
lamento melancólico de alguém que descobriu (grifo meu) algo a respeito
da horrível profundeza de iniqüidade que existe em seu próprio coração. É o
gemido de uma pessoa iluminada por Deus, uma pessoa que odeia a si mesma — ou
seja, o homem natural — e anela por libertação (http://www.editorafiel.com.br/artigos_detalhes.php?id=84).
Eis
o tormento causado pelo conhecimento, inclusive
da Lei Moral de Deus. Acaso não teria sido mais vantajoso ter continuado na
ignorância em relação à Lei? Muito tarde
para isso. Não dá mais para “não ter conhecido”. Uma vez iluminados pela luz da
verdade, não conseguiríamos viver novamente na escuridão da ignorância; por
mais difícil que seja conviver com o conhecimento. E se pudéssemos aconselhar o
ignorante? Diríamos para continuar na sua ignorância para não se arrepender de
ter conhecido? Estaríamos corretos?
O Filósofo Grego Platão, em
sua Alegoria da Caverna, abordada a partir da Teoria do Conhecimento, ensina
que a vida do ser humano pode ser divida em 3 etapas:
1º) A primeira etapa, a Agnosis,
é a etapa da Ignorância, representada, em sua alegoria, por homens presos,
desde a infância, no interior de uma caverna escura, olhando sombras refletidas
na parede, enquanto entendem ser esta a única realidade/verdade existente, já
que não conheciam outra. Segundo Platão, todos os seres
humanos, sem exceção, já nascem nessa
etapa, na ignorância. A maior parte das pessoas jamais sairão dela.
Nascerão, viverão e morrerão na ignorância.
2ª) A segunda etapa, o Doxa, é a etapa da desconfiança ou opinião,
representada na alegoria, pelo prisioneiro que consegue se libertar e olhar,
pela primeira vez em sua vida, em outra direção, para a entrada da caverna,
quando percebe que existe algo além das sombras que entendia como a única
verdade existente, porém, ainda não consegue discernir com clareza o que
consegue ver no exterior da caverna, mas tem, agora, certeza de uma coisa:
existe algo além das sombras que via. Segundo Platão, algumas pessoas transcendem à Agnose e conseguem chegar a essa
etapa, mas não todas.
3ª) Finalmente, a terceira
etapa, Episteme,
é a etapa do “Conhecimento”. Quando o indivíduo que conseguiu se libertar de
sua cadeia, imposta desde a infância, e, agora, sai definitivamente da caverna,
ficando frente a frente com o real, com a verdade. Ele finalmente, “conhece” a
verdade e entende perfeitamente que antes, quando na caverna, era um ignorante,
vendo sombras e julgando ser a realidade. Segundo Platão, poucos chegam nessa etapa.
A imagem acima, em forma e
significado piramidal, demonstra bem o número de pessoas em cada uma dessas
etapas:
Ao se deparar com a Luz da
verdade, do conhecimento, identificados na alegoria de Platão pela Luz do sol, o
preso que consegue se libertar das cadeias, já começa a sentir os primeiros
problemas causados pelo “conhecimento”:
1) Seus olhos, agora desconfortáveis,
são ofuscados por conta dos longos anos
vividos na escuridão da caverna;
2) Sente a necessidade, incontrolável
de voltar à caverna para tentar soltar seus companheiros de infortúnio, pois o
conhecimento da verdade não lhe permite mais viver tranquilamente enquanto lembra-se
de outras pessoas, seus companheiros, que ainda estão vivendo na completa escuridão da ignorância, o que
denota a inquietação e responsabilidade trazida pelo conhecimento;
3) Sofre muita
resistência dos seus antigos companheiros de prisão ao tentar abrir-lhe os olhos para que, também, assim como ele, conheçam a verdade. Afinal, é bem mais
cômodo ficar na zona de conforto que sair em busca do conhecimento.
4) Como insiste em levar
o conhecimento adquirido adiante, aos outros, é, finalmente, morto por seus
próprios companheiros. De fato, muitas vezes o conhecimento poderá ser
responsável por traumas irremediáveis.
A decisão por querer
conhecer é algo de extrema
responsabilidade e que trás um imenso peso ao ser humano. Chegar ao
conhecimento, entretanto, não é nada
fácil. Por isso mesmo, muitas pessoas preferem continuar na comodidade e na
inércia da ignorância. É preciso percorrer um longo e árduo caminho para chegar
ao conhecimento.
O filme Show de Truman
aborda de forma brilhante esse tema, completamente embasado na Teoria do Conhecimento de Platão. Ou seja,
alguém que vivia na completa escuridão da ignorância e depois resolve sair em
busca da verdade, do conhecimento. Veja toda a
dificuldade que essa atitude pode gerar, na cena final do filme, abaixo:
Apesar do tormento que o “conhecimento”
pode trazer, ele é também fonte, talvez a única, de soluções inadiáveis. O
conhecimento prévio de uma doença grave, por exemplo, ainda que traga dor e
tristeza, pode ser fundamental para o início de um tratamento eficaz. Da mesma
forma, o conhecimento do perigo que um filho está correndo, por mais
desesperador que seja para seus pais, pode permitir que cheguem a tempo de
salvá-lo do desastre eminente.
Finalmente, o que a bíblia tem a nos dizer sobre esse tema?
Qual a recomendação e
opinião da Palavra de Deus a esse respeito? Devemos buscar o conhecimento ou,
antes, pelo contrário, preferir a ignorância? Qual o melhor para nossa vida? O
atormentador peso do conhecimento ou a
suposta leveza da ignorância?
Que muitos líderes
religiosos preferem seus rebanhos na mais completa escuridão e ignorância, para
poder assaltar-lhes os bolsos com maior tranqüilidade, é certo. Mas, e a
Bíblia? O que nos diz? Vejamos alguns textos:
Mateus 28:19-20: “19.Ide,
portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e
do Filho, e do Espírito Santo;
20.ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis
que estou convosco todos os dias até à consumação do século”.
Algumas pessoas
costumam dizer que não gostam de teologia. “Meu negócio é vida prática”, afirmam.
No texto acima, um dos mais conhecidos, sempre que é citado, pontua-se a
questão do “Ide” (v.19), da “evangelização”. Mas,
não podemos esquecer que o mesmo imperativo para “evangelizar” é aplicado, com
a mesma intensidade, para a necessidade do “ ensino da palavra de Deus” (v.20). Em Mateus
22:29, Jesus levanta mais uma vez a questão da importância do aprofundamento no
estudo das escrituras. Diz ele: “Errais, não conhecendo as Escrituras”. Em João
5:39, sobre esse assunto, mais uma vez Jesus incentiva o aprofundamento nas
escrituras, diz ele: “Examinai as escrituras”.
8.36
Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.
8.32 e
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. (Conhecimento
da Verdade)
E o que é a verdade?
Jesus, em João 17:17,
explica: “ Santifica-os na
verdade; a tua palavra é a verdade”.
O próprio Paulo, mesmo
sabedor do sofrimento e responsabilidade que o conhecimento trás, opta por ele
e desconsidera a possibilidade de viver na ignorância. Muito embora, o
conhecimento de Deus e dos seus preceitos também produzam prazer e
descanso sem igual.
II Timóteo:
Colossenses
1.10 a
fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu inteiro agrado,
frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus;
Romanos
1.28 E,
por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma
disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes,
Por fim, devemos entender que o conhecimento de Deus e de seus preceitos, descritos exclusivamente em sua Palavra, são verdadeiros luzeiros a iluminar nosso caminho, a dissipar por completo as trevas da ignorância.
Tito
1.1 Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade.
Por fim, devemos entender que o conhecimento de Deus e de seus preceitos, descritos exclusivamente em sua Palavra, são verdadeiros luzeiros a iluminar nosso caminho, a dissipar por completo as trevas da ignorância.
A ignorância é Felicidade?
Depende do que entendemos por Felicidade.
Depende do objetivo de nossas vidas. Se nosso objetivo é a glória de Deus, não podemos ficar alheios ao conhecimento Dele e de seus preceitos. Se há alguma possibilidade da ignorância
trazer felicidade, prefiro, e devemos preferir, a dor do conhecimento à louca
sensação de paz e tranqüilidade que a ignorância forja, fazendo tudo parecer real, enquanto sabemos: são apenas sombras.
Preferir sombras à verdade, tendo a possibilidade de conhecer a verdade, é um ato tão louco quanto pode ser.
Preferir sombras à verdade, tendo a possibilidade de conhecer a verdade, é um ato tão louco quanto pode ser.
Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos (Salmos
119.105).
sexta-feira, 4 de maio de 2012
GERAÇÃO DE DAVI - NOVO CLIP
O grupo Musical Geração
de Davi lançou clip da música Coração Adorador, do seu novo CD. Inegavelmente
grupos como o desses irmãos (do meu irmão Marcos Correia) têm revolucionado a
música gospel e ajudado a melhorar sua qualidade técnica, com instrumentos top
de linha e músicos de alta qualidade. Sem eles, a música gospel estaria fadada a
continuar sendo produzida com equipamentos, instrumentos e músicos de quinta categoria no Brasil. Conheço outras músicas do grupo Geração de Davi, do primeiro CD, e posso testificar essa qualidade. Por outro lado,
grupos como o Geração de Davi têm sido responsáveis pela inclusão de novos
conceitos, como por exemplo, a chamada “ministração da música”, comum em 99,9% das igrejas, como forma de condução da igreja à adoração, bem como a utilização desse elemento lúdico - a música - para o doutrinamento da igreja. Gostaríamos de saber sua opinião sobre o assunto.
sexta-feira, 20 de abril de 2012
A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte IV - FINAL
CONCLUSÃO
A
filosofia bergsoniana dá uma importante contribuição às graves e atuais
questões da bioética. Muitas vozes têm se levantado contra o aborto –
especialmente dos fetos com anencefalia -, bem como contra a eutanásia, mas
nenhuma delas (nessa área específica do conhecimento) com a pujança da filosofia de Henri Bergson.
Em
julho de 2007, a
impressa do mundo inteiro noticiou a “surpresa” dos médicos pela “retomada de
consciência” de um polonês que há dezenove anos estava no chamado estado
vegetativo[i].
Essa é uma prova evidente de que a ausência de atividade cerebral – somente –
não é prova definitiva para uma pessoa ser declarada morta, tendo em vista a
possibilidade de reversão do quadro, ainda que remota, ainda que para a
surpresa da ciência.
Por
tudo isso, a desvinculação do binômio cérebro-consciência, sugerida por
Bergson, precisa ser “urgentemente” reavaliada. A ciência não pode assumir
(como tem feito) postura de detentora de todos os conhecimentos. A ciência –
sozinha – não pode e não deve definir o que é vida e o que é morte. Quantos
“fetos vivos” ainda terão que ser extirpados, por não serem definidos como “seres
humanos” pela ciência? Quantas Terri Schiavo’s
ainda terão que morrer de inanição, porque a ciência (que deveria
advogar em favor da vida) lastreou a retirada das sondas de alimentação?
Quantas Eloás não perderão o direito, diferentemente do polonês, de aguardar um
pouco mais a reversão de seu quadro?
Urge
uma necessidade eminente de redescobrirmos a filosofia bergsoniana, para o bem
e continuação da vida.
BIBLIOGRAFIA
BEAUPORT,
Elained. A inteligência emocional:
as três faces da mente. Trad. de Marly Winckler. Brasília: 1997. p
BERGSON. Henri. A consciência e a vida. Trad. de
Franklin Leopoldo. São Paulo: Abril Cultural, 1979d. p. 75. (Coleção os
Pensadores).
______. A alma e o corpo. Trad. de Franklin
Leopoldo. São Paulo: Abril Cultural, 1979e. p. 75. (Coleção os Pensadores).
______. Cartas, conferências e outros escritos. Trad. de Franklin Leopoldo. São Paulo: Abril
cultural, 1979i. 238 p. (Coleção Os Pensadores).
BERKOHOF, Louis. Teologia sistemática. Trad. de Odayr
Olivetti. Campinas: Luz para o caminho, 1990. 791p
DELNERO,
Henrique Schutzer. O sítio da mente: pensamento e vontade no cérebro humano.
São Paulo: Collegium Cognitio, 1997
LUCKESI,
Cipriano. Filosofia da educacao. 1. ed. Sao paulo: Cortez Editora e Livraria
Ltda, 1994. 183 p. -- (colecao magisterio-2. grau. serie formacao do professor)
MACHADO.
Ângelo. Neuroanatomia funcional. São
Paulo: Atheneu, 2004. p
MORAES,
Maria Cândida. Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI.
Petrópolis: Vozes, 2004. p
TEIXEIRA,
João de Fernandes. Filosofia e ciência cognitiva. Petrópolis: Vozes,
2004. p.
[i] http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2007/06/02/296007334.asp: “Um polonês que
permaneceu 19 anos em coma, depois de ter sido atropelado por um trem,
surpreendeu os médicos ao retomar a consciência. De acordo com a imprensa polonesa,
Jan Grzebski, hoje com 65 anos, ficou espantado com as mudanças na Polônia e em
sua família durante o tempo em que permaneceu em coma. “Agora eu vejo pessoas
nas ruas com telefones celulares e há tantas coisas boas nas lojas que eu fico
tonto. Quando entrei em coma, havia apenas chá e vinagre nas lojas, a carne era
racionada e havia imensas filas para abastecer os carros em toda parte”.
quinta-feira, 19 de abril de 2012
A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte III
O QUE É O HOMEM?
Finalmente,
depois de desconstruir a idéia de uma consciência existente apenas como uma
espécie de espelho do cérebro, Bergson se vê diante do mesmo antigo problema
ontológico: O que é o ser “homem”? A essa questão responde de forma simples,
nunca superficial: matéria e consciência.
O homem é,
enquanto matéria, “submetido à necessidade, desprovido de memória [...] nada
acrescentando ao que já havia no mundo” (BERGSON, 1979d, p.77).
A matéria
serve como uma espécie de aprisionamento do homem no presente, o que não
devemos confundir com a teoria platônica, pois Bergson não vê o corpo como uma
“prisão”, no sentido negativo utilizado por Platão. Para ele, isso é apenas uma
constatação, sem a preocupação de juízos de valores, sem contar que a interação
que há entre o corpo e o outro elemento constitutivo do homem, que não
pré-existe, como afirma Platão, ao contrário: co-existe, se dá de forma natural
e positiva, como ele mesmo afirma: “A matéria é necessidade, a consciência é
liberdade; mas por mais que elas se oponham uma à outra, a vida encontra meio
de reconciliá-las” (BERGSON, 1979d, p.75).
Esse
confinamento no momento presente se dá devido à constituição do corpo, e
Bergson faz questão de frisar isso para evidenciar ainda mais o outro
contraponto ontológico – a alma.
Bergson, ao
analisar o problema do tempo, defende certa primazia do presente, de forma que
as outras modalidades de tempo parecem orbitar em torno dele. Esta primazia é
ainda mais acentuada com relação ao corpo, como afirma: “o corpo é matéria, a
matéria está no presente” (BERGSON, 1979d, p.84). E novamente, para clarificar ainda mais essa
idéia, na forma de síntese, afirma ele que “o corpo que está confinado ao
momento presente no tempo, e limitado ao lugar que ocupa no espaço, que se
conduz como autônomo e reage mecanicamente às exigências exteriores” (BERGSON,
1979d, p.84).
Bergson
teve sua formação lastreada sob os moldes do Positivismo, não ficando, contudo,
preso aos seus ditames. Esse conhecimento científico, sobretudo das ciências
biológicas, matemáticas e físicas, com uma boa ênfase em mecânica, foram
experiências relevantes em sua vida, e o habilitaram ainda mais para aprofundar
uma metafísica que conduzisse o homem aos fatos reais; a não retirar a verdade
dos fatos, mas, antes, a experimentar a própria verdade no próprio fato. Isso
já havia sido almejado por Spencer, mas, por não ter “os conhecimentos
necessários de mecânica” e das outras ciências positivas, não logrou êxito em
sua investida, deixando difícil missão para Bergson.
O fato é
que, mesmo sendo um homem das ciências, Bergson não se conformava com a falta
de fidelidade nas respostas oferecidas pelo Positivismo e pela própria
metafísica tradicional, sobretudo quanto à questão do tempo.
Para ele, o
homem não pode ser constituído apenas de moléculas e outros centros nervosos,
ainda que sofisticadíssimos. Ao lado disso, existe um outro elemento, talvez
nem mais nem menos importante que o primeiro, mas que não pode ser negado enquanto
elemento igualmente constitutivo da essência do ser humano: a alma. Centro de
toda imprevisão, possuindo caráter voluntário e antagônico à previsibilidade da
matéria é, por isso mesmo, e não por não se deixar dominar e por não “caber”
nas respostas pré-fabricadas das ciências positivas, negada, como percebe
Bergson:
A verdade é que se pudéssemos, através do
crânio, ver o que se passa no cérebro que trabalha, se dispuséssemos, para
observar o interior do cérebro, de instrumentos capazes de aumentar milhões de
vezes mais do que nossos melhores microscópios, se assistíssemos assim a dança
das moléculas, átomos e elétrons, de que é feita a substância cerebral [...]
saberíamos tão bem quanto à pretensa “alma” tudo o que ela pensa, sente e quer
tudo o que ela acredita fazer livremente enquanto o faz mecanicamente [...]
pois a pretensa alma, consciente apenas para abarcar uma pequena parte da dança
inter-cerebral [...]. “A alma consciente”, é quando muito, um efeito que
percebe efeitos (BERGSON, 1979e, p.75).
Além das
características de imprevisibilidade, o que a torna também sempre criadora,
pois, como suas atitudes não podem ser previstas, todas as suas realizações
serão sempre novas, nunca antes existentes, essa alma possui também a
capacidade de ultrapassar, de transcender, não sendo nenhum tipo de reflexo do
material, do corpo, isto é, não pode ser encontrada em nenhum lugar do corpo,
nem mesmo nos neurônios e teias cerebrais[i].
Isso equivale a dizer que a alma é outro elemento constitutivo do ser humano,
dotado de distinção e características próprias, nunca fruto de emanação da
matéria, do corpo.
A alma transcende, ultrapassa todos os limites do corpo a
quem está intrinsecamente ligada, mas, ao mesmo tempo, separada por suas
próprias distinções categóricas. A alma ultrapassa o corpo tanto no espaço como
no tempo. No espaço, porque, diferentemente do nosso corpo, que está detido nos
contornos da matéria que o limita, tem a capacidade de perceber, de ver o que
está distante do nosso corpo, “podendo deslocar-se até às estrelas”; “viajar” a
milhas e milhas de quilômetros, enquanto nosso corpo permanece inerte,
segurando um bom livro.
Mas
a alma também transcende o corpo no tempo. Nosso corpo, sendo matéria, está no
presente, e ainda que traga em si os traços dos tempos passados, só o são
assim, passados, por causa da alma, da consciência que assim os interpreta,
como diz Bergson:
Se é verdade que o passado aí deixa seus
traços, são traços de passados apenas para uma consciência que os percebe e
interpreta o que percebe à luz do que ela recorda: a consciência, ela sim,
retém o passado enrolando sobre si própria, na medida em que o tempo passa, e
prepara com ele um futuro que ela contribuirá para criar (BERGSON,
1979d, p.83).
Bergson
parece ter apreendido essa noção de alma, espírito, consciência, não somente
através de seus métodos experimentais de um “empirista radical”, em contrapondo
com o elemento corpóreo e material, mas, possivelmente, pode ter sofrido algum
tipo de influência do pensamento judaico, uma vez que era de família judaica[ii].
Isso pode explicar porque se utiliza de sinônimos para representar a idéia de
consciência, como, por exemplo, espírito, alma, eu. A utilização de sinônimos é
muito comum na literatura judaica, além de considerar também a igualdade entre
conceitos:
É costume entender que o homem é constituído de
duas partes distintas, e de duas somente, a saber, alma e corpo. Várias
palavras são empregadas no Velho Testamento para indicar o elemento inferior do
homem ou parte dele, como: carne, pó, ossos, entranhas, rins e também
expressões metafóricas como “casa de barro”. Há também diversas palavras que
indicam o elemento superior, como: espírito, alma, coração e mente (BERKHOF,
1998, p. 193).
Vejamos
como Bergson entende a alma:
Apreendemos algo que se estende muito mais
longe que o corpo por todos os lados e que
cria atos ao se criar continuamente a si mesmo, é o “eu”, é a “alma”, é
o “espírito” – o espírito sendo precisamente uma força que pode tirar de si
mesmo mais do que contém, devolver mais do que recebe, dar mais do que possui.
Eis o que cremos (BERGSON, 1979e. p.84.)
Parece-nos
claro que Bergson, diferentemente das ciências, acredita na existência de uma
alma autônoma em relação ao corpo, e que o ultrapassa, transcendendo-o não somente
no espaço, mas também no tempo. E isto não é uma afirmação ao acaso ou
puramente religiosa ou ainda desprovida de rigor científico; pelo contrário,
ele chega a esta conclusão em oposição ao “aprisionamento no presente” e na
circunscrição do espaço a que está submetida a matéria, podendo,
conseqüentemente, ser previsto, limitado e dominado. Mas, contrariamente, o que
experienciamos nas profundezas do nosso eu é “indubitavelmente que nos sentimos
livres, que tal é a nossa impressão [...] àqueles que sustentam que este
sentimento é ilusório, incumbe, pois, a obrigação da prova” (BERGSON, 1979e.
p.86).
O que é o homem? Bergson, diferentemente de uma visão
materialista, entendia que o homem possui, além de um corpo, uma dimensão
espiritual. Para ele, a vida não se resume “ao vai-e-vem das moléculas
cerebrais”. Essa forma “bergsoniana” de conceber o homem ou qualquer outra
resposta dessa pergunta ontológica refletirá, indiscutivelmente, nas decisões
éticas[iii].
[i]
Considerando que a alma bergsoniana é a própria consciência, evidentemente,
este pensamento não tem sustentação nas ciências positivas. Os avanços
científicos demonstram uma crescente tendência de vinculação da consciência ao
cérebro. Negar essa verdade científica, em última análise, é negar a própria
razão, segundo DELNERO, Henrique
Schutzer. O sítio da mente: pensamento e vontade no cérebro humano.
São Paulo: Collegium Cognitio, 1997. p. 18: “Em não se reconhecendo gerada no
sítio cerebral, a mente nega a ciência; nega o desvio e seu tratamento; nega a
ética nas relações entre seres biológicos e, finalmente, nega a razão. Resgatar
uma noção científica da mente, definindo-lhe o local, a função, o desvio e a reunião
em grupo pode nos guiar na síntese de uma nova teoria da vida individual e na
visão mais clara de certos impasses coletivos”. A ciência não só vincula a
consciência ao cérebro, mas identifica áreas específicas para funções
específicas, como afirma MACHADO.
Ângelo. Neuroanatomia funcional. São
Paulo: Atheneu, 2004. p. 275: “Durante muito tempo acreditou-se que os
fenômenos emocionais estariam na dependência de todo o cérebro. Coube a Hess,
prêmio Nobel de medicina, demonstrar que esses fenômenos estão relacionados com
áreas específicas do cérebro”. Ainda sobre essas áreas específicas do cérebro,
afirma BEAUPORT, Elained. A inteligência
emocional: as três faces da mente. Trad. de Marly Winckler. Brasília: 1997.
p. 21: “o cérebro é composto de três estruturas
diferentes, que desempenham três funções distintas: o sistema neocortical do
pensamento e da imaginação; o sistema límbico, localizado abaixo do neocórtex,
que nos permite desejar e sentir e, abaixo desses dois, uma estrutura tríplice
complexa, relacionada com o comportamento”. Com relação à memória, vinculada,
por Bergson, especificamente à alma, à consciência, a ciência vincula, de forma
clara, ao cérebro, conforme DELNERO, 1997, p. 207: “Outros elementos que devem
estar relacionados à memória no cérebro humano são os moduladores de ação
sináptica (hormônios, neuromoduladores). Da mesma forma que algumas drogas
apagam ou prejudicam a memória (como o álcool), também algumas “substâncias”
internas podem amplificá-la e gerar eventos que colaboram nas alterações de
estrutura que subjazem a ela”. Deve-se
salientar também, que a ciência pós-moderna caminha, muitas vezes, em direção
contrária ao paradigma científico tradicional, como afirma MORAES, Maria
Cândida. Pensamento eco-sistêmico: educação, aprendizagem e cidadania no século XXI.
Petrópolis: Vozes, 2004. p. 309: “De uma sociedade mecanicista, compartimentada
e reducionista, na qual prevalecia a objetividade, estamos caminhando em
direção ao reconhecimento da multidimensionalide do ser humano e da complexidade
que envolve a realidade individual coletiva e ecológica. A ciência pós-moderna
está ressuscitando o ser sensível, enterrado pela ciência tradicional, e
reconhecendo multidimensionalidade e
complexidade dos processos da vida. É o que a nova biologia e a física quântica
nos sinalizam. O avanço da ciência não apenas está desenterrando as dimensões
subjetivas do ser humano, ignoradas e negadas pelo paradigma tradicional, mas
também ressuscitando a natureza, o cosmo e o sagrado, e reconhecendo emoções e
os sentimentos como co-construtores da racionalidade humana. Esta nova
consciência que emerge vem promovendo uma nova maneira de perceber a realidade
e a própria dinâmica da vida”. Nesse mesmo sentido, comenta TEIXEIRA, João de
Fernandes. Filosofia e ciência cognitiva. Petrópolis: Vozes, 2004. p.
105-107 e 118: “A filosofia da mente foi fortemente abalada pelo advento da
ciência cognitiva, que estabeleceu a possibilidade de fundarmos uma ciência dos
fenômenos mentais, deixando para trás meras especulações. No século XX
tornamo-nos quase todos materialistas, enfrentando agora a difícil tarefa de relacionar as propriedades da mente
com as do cérebro ou com as de outros dispositivos materiais [...]. O
neurocientista parece ter se tornado um partidário do chamado materialismo
eliminativo [...] não precisaríamos mais falar de intenções, crenças ou
desejos, mas apenas de partes do nosso cérebro [...]. Devemos abandonar o
projeto de construir uma ciência do cérebro? Com certeza não [...] o que deve
ser abandonado, contudo, é a ingenuidade filosófica dos neurocientístas. A
ciência do cérebro deve ser uma ciência de como nós representamos nosso
cérebro. Não se trata de uma circularidade fútil, mas a recognição de que
questões epistemológicas não podem ser ignoradas por aqueles que praticam a
neurociência seriamente [...] Bergson é radical: o cérebro consegue mimetizar o
processo da consciência de forma limitada e a prova disso é a insuficiência da
linguagem ao expressar a intuição, sendo sempre incompleta e frustrante”.
[ii] Sobre sua
origem judaica, em BERGSON, 1979i., p. 6, está registrado: “Na fase final de
sua vida e de sua obra, Bergson manifestou crescente aproximação da doutrina
cristã. Sua origem judaica, entretanto, parece tê-lo impedido de converter-se
publicamente ao catolicismo, não desejando abandonar seu povo num momento em
que este vivia entre ameaças e perseguições”.
[iii]
Em 31/03/2005 o mundo noticiou a Eutanásia da norte-americana Terri Schiavo, que teve os aparelhos e tubos de
alimentação que a mantinham “viva”, subitamente, retirados em 19/03/2005. Por
seu cérebro não mais responder a certos estímulos, foi considerada em estado
vegetativo, mesmo não sendo possível saber exatamente como ela percepcionava
certas sensações. Esta importante decisão, no campo da bioética, resultou em
intenso debate sobre a questão outrora abordada por Bergson: É a consciência
apenas um produto do cérebro ou pode existir independentemente deste? Mesmo com
o avançado estado atual da ciência, decisões como estas, tendem a causar muita
polêmica, havendo discordância, inclusive, entre os próprios
especialistas. Para saber mais, acessar
o seguinte endereço eletrônico: http://forum.cifraclub.terra.com.br/forum/11/83964.
terça-feira, 17 de abril de 2012
A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte II
A continuidade da duração da consciência em Bergson: Corpo e Alma - uma consciência para além do cérebro
Estamos
sujeitos às mesmas leis que operam sob todas as outras matérias. Temos um
corpo, circunscrito no espaço, de forma que, pelo menos na visão do senso comum
e, se considerarmos as questões pertinentes à imobilidade, se o impulsionarmos
para frente, ele avança; se, pelo contrário, nós o puxarmos, ele recua e, se o
largarmos, ele cai. Nosso corpo age deliberadamente por movimentos provocados
por causas exteriores. Como afirma Bergson: “a matéria é inércia, geometria,
necessidade” (BERGSON, 1979d, p.75).
Nossa
identificação com o material é tão forte, e não poderia deixar de ser, que,
como bem nos afirma Bergson, “Costuma-se dizer às vezes: Em nós, a consciência
está ligada a um cérebro, por isso, é preciso atribuir a consciência aos seres
vivos que possuem um cérebro, e recusá-la aos outros” (BERGSON, 1979d, p.72).
Nesse sentido,
acredita-se que, desintegrando-se o cérebro, também se acaba a consciência e,
por estar tão ligada a ele, acabam por confundir-se.
Para
a ciência, essa consciência está tão intrinsecamente ligada ao corpo, que este
a acompanha desde o seu nascimento até a sua morte; e, ainda que, por
suposição, existisse uma consciência distinta do corpo, isto é, uma consciência
não provocada pelo movimento das moléculas cerebrais, ainda assim, tudo se
passaria como se ao corpo estivesse ligada, de forma inseparável e, tudo que
aconteça a ela – consciência – estará sempre relacionado, diretamente, a algo
que tenha iniciado, provocado ou sofrido pelo corpo. Se respiramos cloro, éter
ou gás carbônico, por exemplo, seguindo a linha de raciocínio da visão
científica, nossa consciência se esvai; da mesma forma, quando ingerimos
bebidas alcoólicas, como resultado teremos uma consciência exaltada; se somos
acometidos por uma doença infecciosa, que atinja, de alguma forma, o cérebro,
deixando seqüelas, ficamos alienados, isto é,
sem consciência. Nesses casos, quando há óbitos, a ciência sempre
relaciona a causa da “perda da consciência”, a lesões no cérebro e, quando
essas lesões não podem ser localizadas, a patologia é atribuída a alterações
químicas nos tecidos cerebrais.
Além
desses exemplos que acabamos de citar, a ciência avança a passos largos para o
chamado mapeamento do cérebro. Acredita-se que, com esse mapeamento fisiológico
do cérebro e, conseqüentemente, com a descoberta da função que possui cada zona
do cérebro em específico, ter-se-á desvendado o mistério da consciência,
trazendo com isso o tão sonhado domínio completo e a previsão perfeita de todos
os atos humanos, ou, pelo menos, de grande parte. Seria uma espécie de fim
daquilo que é tão contrário ao espírito científico: a imprevisão e a desordem.
Consegue-se
localizar e atribuir a certa zona cerebral algumas funções da consciência ou do
espírito, como, por exemplo, a faculdade de executar movimentos voluntários. A
ciência já consegue identificar que lesões, em determinadas partes ou zonas
cerebrais, levam à paralisia dos braços e pernas; em outras, a linguagem é
totalmente afetada. Até mesmo funções que são naturalmente atribuídas à
consciência, ao espírito, como, por exemplo, a memória, pode ser localizada em
alguma circunscrição das zonas cerebrais, e sofrerão danos se essas zonas forem
atingidas e lesionadas.
Bergson,
muito embora não tenha sido testemunha ocular dos últimos avanços nesta área,
pensava diferente: “não se segue daí que um cérebro seja indispensável à
consciência” (BERGSON, 1979d, p.72). Para ele, a consciência existe independentemente
das funções cerebrais; isso equivale a dizer que ela não está presa ao cérebro,
e nem mesmo existe por sua causa.
Bergson
acreditava que atribuir consciência apenas aos seres vivos que possuem cérebro,
utilizando-se para isso uma argumentação baseada em analogias exteriores para
explicar coisas interiores, por meio de probabilidades, era uma argumentação
extremamente viciada. Diz ele:
Para saber com plena certeza se um ser é
consciente, seria preciso penetrar nele, coincidir com ele, ser ele. Eu desafio
a provar, por experiência ou por raciocínio, que eu, que lhes falo neste
momento, sou um ser consciente. Eu poderia ser um autômato engenhosamente
constituído pela natureza, indo, vindo, falando; as próprias palavras pelas
quais me declaro consciente poderiam ser pronunciadas inconscientemente.
Todavia, se a coisa não é totalmente impossível, conceder-me-ão que ela não é
de forma alguma provável. Entre vocês e mim há uma semelhança exterior
evidente; e desta semelhança exterior concluirão, por analogia, uma semelhança
interna. O raciocínio por analogia não dá jamais algo além da probabilidade (BERGSON,
1979d, p.72).
Para
argumentar ainda contra essa linha “viciada” de raciocínio, que apregoa uma
consciência ligada, necessariamente, a um cérebro, e utilizando-se dela para,
por fim, negá-la, Bergson argumenta que, “raciocinando da mesma maneira,
diríamos também: A digestão está ligada em nós a um estômago; por isso os seres
vivos que possuem estômago digerem, os outros não digerem” (BERGSON, 1979d, p.72).
Afirmar
assim, acreditar assim, de forma positiva, seria, parafraseando suas palavras,
“um grave engano”, pois, como ele mesmo afirma, “não é necessário estômago, nem
mesmo órgãos para digerir: uma ameba digere, embora seja uma massa
protoplasmática apenas diferenciada” (BERGSON, 1979d, p.72).
Em sua
análise sobre a suposta necessidade da existência de um cérebro como condição sine qua non para a existência de uma
consciência, Bergson chega à conclusão de que isto é simplesmente um problema
fisiológico, deixando clara sua intenção de desconstruir essa idéia, não ao
acaso, e de forma cética, mas, como veremos mais adiante, essa desconstrução
inicial servirá de base para uma surpreendente abertura para a possibilidade do
“além”, da “eternidade”.
Na tentativa
de banir, definitivamente, o binômio cérebro x consciência, Bergson desce à
cadeia de evolução na série animal e demonstra existirem seres vivos que, mesmo
não possuindo cérebro, agem como se de fato possuíssem uma consciência.
Em certo
sentido, para ele, “a rigor, tudo o que é vivo poderia ser consciente: em
princípio, a consciência é co-extensiva à vida” (BERGSON, 1979d,
p.72). Evidentemente, Bergson também admite
que, quanto mais se baixa na cadeia evolutiva da série animal, mais existe uma
tendência de essa consciência vir a “adormecer”, isto é, tornar-se menos ativa,
nunca de ser reduzida a nada. Contudo, o fato de ter o sistema nervoso humano
um grau elevado de complexidade e distinção, dando-nos, assim, a impressão de
ter a consciência vida tão somente no vai-e-vem das moléculas cerebrais, não
nos autoriza, de forma alguma, uma conclusão de ser a existência de um cérebro
única condição para a existência de uma consciência:
Lembremos da ameba, de que falávamos há pouco.
Na presença de uma substância que lhe pode servir de alimento, ela lança para
fora filamentos capazes de apreender e agarrar corpos estranhos. Estes
pseudópodes são verdadeiros órgãos e, conseqüentemente, mecanismos; mas são
órgãos temporais, criados pelas circunstâncias e que já manifestou, parece, um
rudimento de escolha. Em suma, de alto a baixo na cadeia da vida animal vemos exercer, embora sob a forma cada
vez mais vaga na medida em que consideram os graus mais baixos, a faculdade de
escolher, isto é, de responder a uma excitação determinada por movimentos mais
ou menos imprevistos. A consciência retém o passado e antecipa o futuro, é
precisamente, sem dúvida, porque ela é chamada a efetuar uma escolha: para
escolher, é preciso pensar no que se poderá fazer e lembrar as conseqüências,
vantajosas ou prejudiciais, que já foi feito; é preciso prever e recordar (BERGSON,
1979d, p.73).
Dessa forma,
Bergson se diz satisfeito e considera plausível sua conclusão e resposta à
questão inicialmente levantada: todos os seres vivos são seres conscientes? “A
consciência, originalmente é imanente a tudo que vive” (BERGSON, 1979d, p.74).
Essa linha
de pensamento e busca constante para provar que existe consciência além do
cérebro aparece também, de forma bastante significativa e volumosa, em sua obra
“Evolução Criadora”.
segunda-feira, 16 de abril de 2012
A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte I
Recentemente (2008) tivemos
no Brasil uma ampla discussão acerca da descriminalização total do aborto,
seguindo uma tendência da América Latina. Mal saímos desses intensos debates,
onde saiu vitorioso o grupo da não descriminalização, e outro assunto, de mesmo
caráter, de pronto surgiu; na verdade uma retomada de um antigo problema[i]: a
questão do aborto de fetos anencéfalos[ii].
Como em todos os assuntos de cunho eminentemente ético, este tem provocado uma
intensa discussão, desta feita no Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte
de justiça do Brasil.
Poucos casos,
porém, chamaram, à época, tanto a atenção quanto o da jovem
Eloá[iii],
assassinada com um tiro na cabeça, proferido por seu antigo namorado. O caso
teve ampla cobertura da impressa brasileira, o que acabou dando subsídios para
o levantamento de uma série de questionamentos, tais como: o que leva um jovem
estabilizado a cometer tal crime? Com quantos anos os pais devem permitir que
seus filhos namorem? A polícia brasileira está preparada para enfrentar
situações como essas?
Todos esses são
questionamentos justos, porém, queremos chamar a atenção não para o episódio,
propriamente dito, mas para o momento da decisão acerca do “final da vida” de
Eloá. Quando Eloá morreu? A partir de que nível de consciência o indivíduo pode
ser considerado morto? O que é a vida? O que é Ser-Humano? A ciência pode, de
fato, estabelecer quando a vida chega ao fim? Ou antes, no caso da anencefalia,
quando inicia? Estar “vivo” depende tão somente do pleno funcionamento das
atividades cerebrais? É lícito abreviar a “vida” (desligar máquinas que mantém
os sinais vitais ou mesmo extirpar fetos com anencefalia) de um ser, ainda que
com um nobre objetivo de doação de órgãos ou de diminuição do sofrimento da mãe?
Esses são questionamentos que, em si mesmos, possuem um viés filosófico
extremamente forte.
Os médicos,
antes de constatada a chamada “morte cerebral”, precisam seguir um rigoroso protocolo[iv]
que tem por objetivo medir o nível da atividade no cérebro. Quando esse nível
chega a um patamar muito baixo, o médico pode então atestar a morte do
paciente, liberando-o, mediante autorização da família, para a doação dos
órgãos. Foi precisamente o que ocorreu com Eloá. A ciência definiu o momento de
sua morte, mesmo ainda havendo funções vitais e consciência, ainda que em um
nível considerado baixo.
Esse protocolo,
muito embora possua aceitação mundial, acaba por definir o conceito de Ser
Humano; de Vida e de Morte. Para a ciência (ainda abordaremos esse assunto
mais adiante), o
homem está resumido ao cérebro. O que a filosofia tem a nos dizer
sobre isso? É certo ou errado desligar as máquinas que mantém os sinais vitais?
A eutanásia é um procedimento ético? O que a ética, enquanto objeto de pesquisa
da filosofia, tem a nos dizer sobre o aborto de fetos com anencefalia?
A questão do
direito à vida é um dos elementos basilares do homem – e, assim sendo, é
universal, o que pressupõe que em qualquer lugar do planeta esse direito é o
mesmo e está acima de qualquer outro. Nesse sentido a Ética filosófica
pergunta: pode a ciência definir – sozinha - o fim da vida? Acaso limitar o ser
humano a uma série de atividades cerebrais não significa simplificar algo que é
extremamente mais complexo? O homem é de fato - como quer a ciência - um ser
apenas constituído de elementos materiais ou ao contrário também de elementos
espirituais?
Estaria correto o Ministro do Supremo Tribunal Federal, relator da ação proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, quanto ao aborto em fetos com anencefalia, Marco Aurélio Mello, quando afirma que “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal”?
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/relator-vota-no-stf-pela-legalidade-do-aborto-de-feto-sem-cerebro.html.
Estaria correto o Ministro do Supremo Tribunal Federal, relator da ação proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, quanto ao aborto em fetos com anencefalia, Marco Aurélio Mello, quando afirma que “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal”?
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/04/relator-vota-no-stf-pela-legalidade-do-aborto-de-feto-sem-cerebro.html.
Para responder a essas e outras questões correlatas,
estaremos analisando a contribuição da filosofia Bergsoniana[v]
à difícil problemática que envolve o binômio cérebro-consciência. Aguardem as próximas postagens.
[i] Desde
2004. Para saber mais sobre o assunto, consultar a Revista Época, edição de
15/03/2004.
[ii] A anencefalia consiste em malformação rara do tubo
neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação caracterizada pela
ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de
defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Ao
contrário do que o termo possa sugerir, a anencefalia não caracteriza somente
casos de ausência total do encéfalo, mas sobretudo casos onde observa-se graus
variados de danos encefálicos, conforme http://pt.wikipedia.org/wiki/Anencefalia,
acessado em 01/11/2008.
[iii] A estudante
Eloá Pimentel foi refém do ex-namorado por 100 horas, em 10/2008. No desfecho
do seqüestro, a jovem e a amiga Nayara foram baleadas. Para saber mais sobre o
assunto, acessar o seguinte endereço eletrônico:
http://g1.globo.com/Noticias/eloa.html.
[iv]
Para saber sobre o protocolo de morte cerebral, acessar o site:
http://www.ufpe.br/utihc/morte.htm.
[v] Henri-Louis
Bergson (Paris, 18 de outubro de 1859 – Paris, 4 de janeiro de 1941) foi um
filósofo e diplomata francês. Conhecido principalmente por Matière et mémoire e
L'Évolution créatrice, sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em
diferentes disciplinas - cinema, literatura, neuropsicologia,
conforme: http://pt.wikipedia.org/wiki/Henri_Bergson.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
A TRANSIÇÃO DO TEMPO PARA A ETERNIDADE COMO UM PRESSUPOSTO MÍSTICO EM AGOSTINHO DE HIPONA - Controvérsia com Pelágio - Parte 3 (final)
1.2 A controvérsia com Pelágio
Outra importante controvérsia, de caráter mais teológico, ainda teria despertado Agostinho para a questão da eternidade, desta feita, com Pelágio, monge britânico, eunuco, natural da Irlanda, que se engajou em intenso conflito contra Agostinho, numa questão que envolvia basicamente o problema do livre-arbítrio.
Borges, sobre esse assunto, faz a seguinte afirmação:
A eternidade permaneceu como atributo da ilimitada mente de Deus, e sabe-se muito bem que as gerações de teólogos tem trabalhado essa mente a sua criação e semelhança. Nenhum estímulo tão vivo quanto o debate da predestinação. Quatrocentos anos depois da paixão e morte de Cristo, o monge inglês Pelágio incorreu no escândalo de pensar que os inocentes que morrem sem o batismo alcançam a glória. Agostinho, bispo de Hipona, o refutou com indignação aclamada por seus editores. Observou a heresia dessa doutrina: a negação de que no homem Adão todos nós homens já pecamos e perecemos, o esquecimento horrível de que essa morte se transmite de pai para filho pela geração carnal – adiante que segundo a justiça todos nós merecemos o fogo sem perdão, mas que Deus determina salvar alguns, segundo seu arbítrio[1].
Ainda sobre a importância deste debate que é, em última análise, matéria prima de Agostinho para refletir sobre a eternidae, Sproul faz a seguinte afirmação:
A questão entre Pelágio e Agostinho era clara. Não estava ofuscada por argumentos teológicos intricados, especialmente no começo. Nunca houve, talvez, uma outra crise de igual importância na história da igreja na qual os oponentes tenham expressado os princípios em debate tão clara e abstratamente. Somente a disputa Ariana pode ser comparada a ela[2].
Para Pelágio, diferentemente de Agostinho, o homem continuava habilitado, mesmo depois da queda, a fazer o bem se assim desejasse e que não se fazia necessário uma assistência especial da graça de Deus para que o ser humano o obedecesse. Para Agostinho, entretanto, esta assistência da graça era essencial e indispensável, sendo outorgada por Deus, na eternidade.
Para combater as idéias de Pelágio, consideradas heréticas, Agostinho escreve “A Graça”, uma obra densa e de extrema lucidez, onde retoma a questão do Livre Arbítrio tendo, inclusive, modificado seu entendimento inicial sobre o assunto, além de tratar também sobre a própria doutrina da Graça e sobre Predestinação. Ao abordar esses temas, obviamente Agostinho aborda também a questão da Eternidade.
Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). Pois, se fossem eleitos porque creram, tê-lo-iam escolhido antes ao crer nele e assim merecerem ser eleitos. Evita, porém, esta interpretação aquele que diz: Não fostes vós que me escolhestes [...]. Esta é a imutável verdade da predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos escolheu antes da fundação do mundo?(Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Conseqüentemente, foram escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou os que predestinou e não a outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a outros com a consecução daquele fim que não tem fim[3].
Este debate tem sido atualizado ao longo da história do cristianismo: No século XVI foi revivido de forma intensa pelos reformadores Lutero e Calvino, além de outros, que subscreviam a posição agostiniana, enquanto Erasmo de Roterdam, além de outros, à de Pelágio. No século XVII mais uma vez o debate reaparece, quando um dos mais entusiasmados seguidores de Pelágio, o holandês Thiago Armínius retoma a questão. Para combatê-lo, os calvinistas, reunidos em concílio, formularam um documento que ficou conhecido como “Os Cânones de Dort”, reafirmando, como crença oficial da Igreja Reformada, a posição agostiniana. No século XIX o debate toma força novamente, desta vez com os puritanos ingleses, que formularam a “Confissão de Fé de Westminster”, para ratificar a posição Calvino e, conseqüentemente, de Agostinho. Na contemporaneidade o debate ainda continua de forma intensa, atualizado, principalmente, por calvinistas e arminianos.
O sétimo dia, porém, não tem tarde nem repouso, porque o santificaste para permanecer eternamente. Aquele descanso, com que repousaste no sétimo dia depois de tantas obras muito boas – que realizaste sem cansaço – é um anúncio que nos vem pela palavra da tua escritura: também nós, descansaremos em ti, no sábado da vida eterna, depois dos nossos trabalhos, que são bons porque os concedestes a nós[4].
Como vimos, tanto a controvérsia com os maniqueus como a controvérsia com Pelágio, foram de grande importância na construção teoria do tempo de Agostinho, e, de forma muito particular, para a questão da eternidade. Esses debates provocaram e estimularam sua mente, fazendo-o refletir seriamente sobre o problema.
Contudo, uma das mais marcantes experiências místicas de esperança da continuação da vida da consciência após a morte física que Agostinho desfrutou foi, certamente, na última conversa com sua mãe – Mônica –, ao aproximar-se o dia da sua morte. Relata Agostinho que, depois de uma cansativa viagem, conversava com sua mãe, olhando para o futuro, sobre “qual seria a vida eterna dos santos”. Numa experiência mística, chegando ao “íntimo de suas almas”, por “intuição”, por um momento pensaram ter alcançado fagulhas da vida por vir; e, como afirma, naquele momento de contemplação, “o mundo, com todos os seus prazeres, perdia para nós todo valor e minha mãe me disse: “Meu filho, nada mais me atrai nesta vida [...] Deus me satisfez amplamente, porque te vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo”[5].
Esse diálogo é de fundamental importância para termos noção da esperança que Agostinho alimentava de uma vida além de sua vida física; e não somente isso, mas também de como a considerava, analogamente à sua mãe, mais importante e mais pujante que a vida terrena. Agostinho tinha plena convicção de que sua mãe havia sido predestinada[6], não por merecimento, e que essa convicção, baseada em seus frutos, dava-lhe condições plenas de afirmar que “ela não responderá que nada deve, por medo de ser convencida do contrário [...], mas, ela responderá que sua dívida lhe foi perdoada por aquele a quem ninguém pode restituir o que ele pagou por nós sem ser devedor”[7].
Tomado de uma perplexidade gratificante, pelo testemunho corajoso de sua mãe ao ser perguntada se não tinha medo de deixar seu corpo longe de sua terra natal, ao que respondeu, segundo seu próprio relato, que “para Deus nada é longe, nem devo temer que, no fim dos séculos, Ele não reconheça o lugar onde me ressuscitará”[8]. Tendo, finalmente, falecido sua mãe, refletiu e chegou à conclusão de que:
De fato não parecia justo celebrar o funeral com lamentos e choros, pois essas demonstrações servem usualmente para deplorar a morte como infelicidade ou como aniquilamento total, ao passo que essa morte não era uma desgraça, nem para sempre[9].
A clareza e a convicção de uma “vida eterna” após a vida física inundara a mente de Agostinho, de forma definitiva, fazendo-o produzir um belíssimo salmo com o qual finalizamos sua compreensão de eternidade:
Que se lembrem com piedosa emoção dos que foram meus pais nesta vida transitória [...] Que se lembrem dos meus concidadãos na eterna Jerusalém, pela qual suspira teu povo peregrino desde a partida da pátria até o regresso[10].
[1] BORGES. Jorge Luis. História da eternidade. 4. ed. Trad. de Carmem C.Lima. São Paulo: Globo, 1991.p.2
[2] SPROUL, R.C. Sola gratia: a controvérsia sobre o livre arbítrio na história. São Paulo: Cultura Cristã, 2001. p. 31
[3] AGOSTINHO. A graça II . São Paulo: Editora Paulus, 1999, p.194,195.
[6] Esta é uma doutrina característica de Agostinho. Ele a aborda densamente nos dois volumes de seu tratado sobre a graça. Em síntese, esta doutrina é uma conseqüência lógica de sua antropologia: com o pecado, o homem tornou-se tão corrompido quanto poderia ter sido, isto é, teve sua “essência” totalmente corrompida, não restando, neste homem, bem algum capaz de habilitá-lo a aproximar-se de Deus novamente. A antropologia Agostiniana influenciou profundamente o pensamento protestante reformado, dando origem à doutrina da “depravação total do homem”. Não sendo este homem capaz de, por sua própria vontade, voltar-se para Deus, por estar morto espiritualmente, como conseqüência do pecado, resta-lhe, como única alternativa, contar com a graça de Deus. Antes da fundação do mundo (por isso o termo predestinação), Deus escolheu, graciosamente, alguns para reabilitar (do seu estado de depravação total) e salvar suas almas.
[10] Ibid., XIII, 13.37.
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