A continuidade da duração da consciência em
Bergson: Corpo e Alma - uma consciência para além do
cérebro
Estamos
sujeitos às mesmas leis que operam sob todas as outras matérias. Temos um
corpo, circunscrito no espaço, de forma que, pelo menos na visão do senso comum
e, se considerarmos as questões pertinentes à imobilidade, se o impulsionarmos
para frente, ele avança; se, pelo contrário, nós o puxarmos, ele recua e, se o
largarmos, ele cai. Nosso corpo age deliberadamente por movimentos provocados
por causas exteriores. Como afirma Bergson: “a matéria é inércia, geometria,
necessidade” (BERGSON, 1979d, p.75).
Nossa
identificação com o material é tão forte, e não poderia deixar de ser, que,
como bem nos afirma Bergson, “Costuma-se dizer às vezes: Em nós, a consciência
está ligada a um cérebro, por isso, é preciso atribuir a consciência aos seres
vivos que possuem um cérebro, e recusá-la aos outros” (BERGSON, 1979d, p.72).
Nesse sentido,
acredita-se que, desintegrando-se o cérebro, também se acaba a consciência e,
por estar tão ligada a ele, acabam por confundir-se.
Para
a ciência, essa consciência está tão intrinsecamente ligada ao corpo, que este
a acompanha desde o seu nascimento até a sua morte; e, ainda que, por
suposição, existisse uma consciência distinta do corpo, isto é, uma consciência
não provocada pelo movimento das moléculas cerebrais, ainda assim, tudo se
passaria como se ao corpo estivesse ligada, de forma inseparável e, tudo que
aconteça a ela – consciência – estará sempre relacionado, diretamente, a algo
que tenha iniciado, provocado ou sofrido pelo corpo. Se respiramos cloro, éter
ou gás carbônico, por exemplo, seguindo a linha de raciocínio da visão
científica, nossa consciência se esvai; da mesma forma, quando ingerimos
bebidas alcoólicas, como resultado teremos uma consciência exaltada; se somos
acometidos por uma doença infecciosa, que atinja, de alguma forma, o cérebro,
deixando seqüelas, ficamos alienados, isto é,
sem consciência. Nesses casos, quando há óbitos, a ciência sempre
relaciona a causa da “perda da consciência”, a lesões no cérebro e, quando
essas lesões não podem ser localizadas, a patologia é atribuída a alterações
químicas nos tecidos cerebrais.
Além
desses exemplos que acabamos de citar, a ciência avança a passos largos para o
chamado mapeamento do cérebro. Acredita-se que, com esse mapeamento fisiológico
do cérebro e, conseqüentemente, com a descoberta da função que possui cada zona
do cérebro em específico, ter-se-á desvendado o mistério da consciência,
trazendo com isso o tão sonhado domínio completo e a previsão perfeita de todos
os atos humanos, ou, pelo menos, de grande parte. Seria uma espécie de fim
daquilo que é tão contrário ao espírito científico: a imprevisão e a desordem.
Consegue-se
localizar e atribuir a certa zona cerebral algumas funções da consciência ou do
espírito, como, por exemplo, a faculdade de executar movimentos voluntários. A
ciência já consegue identificar que lesões, em determinadas partes ou zonas
cerebrais, levam à paralisia dos braços e pernas; em outras, a linguagem é
totalmente afetada. Até mesmo funções que são naturalmente atribuídas à
consciência, ao espírito, como, por exemplo, a memória, pode ser localizada em
alguma circunscrição das zonas cerebrais, e sofrerão danos se essas zonas forem
atingidas e lesionadas.
Bergson,
muito embora não tenha sido testemunha ocular dos últimos avanços nesta área,
pensava diferente: “não se segue daí que um cérebro seja indispensável à
consciência” (BERGSON, 1979d, p.72). Para ele, a consciência existe independentemente
das funções cerebrais; isso equivale a dizer que ela não está presa ao cérebro,
e nem mesmo existe por sua causa.
Bergson
acreditava que atribuir consciência apenas aos seres vivos que possuem cérebro,
utilizando-se para isso uma argumentação baseada em analogias exteriores para
explicar coisas interiores, por meio de probabilidades, era uma argumentação
extremamente viciada. Diz ele:
Para saber com plena certeza se um ser é
consciente, seria preciso penetrar nele, coincidir com ele, ser ele. Eu desafio
a provar, por experiência ou por raciocínio, que eu, que lhes falo neste
momento, sou um ser consciente. Eu poderia ser um autômato engenhosamente
constituído pela natureza, indo, vindo, falando; as próprias palavras pelas
quais me declaro consciente poderiam ser pronunciadas inconscientemente.
Todavia, se a coisa não é totalmente impossível, conceder-me-ão que ela não é
de forma alguma provável. Entre vocês e mim há uma semelhança exterior
evidente; e desta semelhança exterior concluirão, por analogia, uma semelhança
interna. O raciocínio por analogia não dá jamais algo além da probabilidade (BERGSON,
1979d, p.72).
Para
argumentar ainda contra essa linha “viciada” de raciocínio, que apregoa uma
consciência ligada, necessariamente, a um cérebro, e utilizando-se dela para,
por fim, negá-la, Bergson argumenta que, “raciocinando da mesma maneira,
diríamos também: A digestão está ligada em nós a um estômago; por isso os seres
vivos que possuem estômago digerem, os outros não digerem” (BERGSON, 1979d, p.72).
Afirmar
assim, acreditar assim, de forma positiva, seria, parafraseando suas palavras,
“um grave engano”, pois, como ele mesmo afirma, “não é necessário estômago, nem
mesmo órgãos para digerir: uma ameba digere, embora seja uma massa
protoplasmática apenas diferenciada” (BERGSON, 1979d, p.72).
Em sua
análise sobre a suposta necessidade da existência de um cérebro como condição sine qua non para a existência de uma
consciência, Bergson chega à conclusão de que isto é simplesmente um problema
fisiológico, deixando clara sua intenção de desconstruir essa idéia, não ao
acaso, e de forma cética, mas, como veremos mais adiante, essa desconstrução
inicial servirá de base para uma surpreendente abertura para a possibilidade do
“além”, da “eternidade”.
Na tentativa
de banir, definitivamente, o binômio cérebro x consciência, Bergson desce à
cadeia de evolução na série animal e demonstra existirem seres vivos que, mesmo
não possuindo cérebro, agem como se de fato possuíssem uma consciência.
Em certo
sentido, para ele, “a rigor, tudo o que é vivo poderia ser consciente: em
princípio, a consciência é co-extensiva à vida” (BERGSON, 1979d,
p.72). Evidentemente, Bergson também admite
que, quanto mais se baixa na cadeia evolutiva da série animal, mais existe uma
tendência de essa consciência vir a “adormecer”, isto é, tornar-se menos ativa,
nunca de ser reduzida a nada. Contudo, o fato de ter o sistema nervoso humano
um grau elevado de complexidade e distinção, dando-nos, assim, a impressão de
ter a consciência vida tão somente no vai-e-vem das moléculas cerebrais, não
nos autoriza, de forma alguma, uma conclusão de ser a existência de um cérebro
única condição para a existência de uma consciência:
Lembremos da ameba, de que falávamos há pouco.
Na presença de uma substância que lhe pode servir de alimento, ela lança para
fora filamentos capazes de apreender e agarrar corpos estranhos. Estes
pseudópodes são verdadeiros órgãos e, conseqüentemente, mecanismos; mas são
órgãos temporais, criados pelas circunstâncias e que já manifestou, parece, um
rudimento de escolha. Em suma, de alto a baixo na cadeia da vida animal vemos exercer, embora sob a forma cada
vez mais vaga na medida em que consideram os graus mais baixos, a faculdade de
escolher, isto é, de responder a uma excitação determinada por movimentos mais
ou menos imprevistos. A consciência retém o passado e antecipa o futuro, é
precisamente, sem dúvida, porque ela é chamada a efetuar uma escolha: para
escolher, é preciso pensar no que se poderá fazer e lembrar as conseqüências,
vantajosas ou prejudiciais, que já foi feito; é preciso prever e recordar (BERGSON,
1979d, p.73).
Dessa forma,
Bergson se diz satisfeito e considera plausível sua conclusão e resposta à
questão inicialmente levantada: todos os seres vivos são seres conscientes? “A
consciência, originalmente é imanente a tudo que vive” (BERGSON, 1979d, p.74).
Essa linha
de pensamento e busca constante para provar que existe consciência além do
cérebro aparece também, de forma bastante significativa e volumosa, em sua obra
“Evolução Criadora”.