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quinta-feira, 30 de abril de 2009

AS COISAS SIMPLES REVELAM GRANDES VERDADES

Estamos vivendo no centro de um redemoinho tão grande que as coisas simples acabam passando despercebidas. Crise mundial, redução de emprego, guerra no oriente médio, gripe suína; tudo isso acrescido aos nossos já tão grandes problemas do dia-a-dia. Quem vai parar para observar as coisas simples e sem importância? Já perceberam que a bela escultura que havia na frente do Aeroporto internacional dos Guararapes mudou? Lembram? Uma escultura que realmente representava nosso Estado, nossa cultura, nosso frevo. Recentemente fiquei intrigado quando percebi que estavam quebrando a imponente estrutura de mármore que lhe servia de base. Mas, logo pensei: deve ser alguma restauração; quem sabe algum vândalo a tivesse danificado. Alguns dias se passaram (enquanto tapumes encobriam a obra) e, como num passe de mágica, a antiga escultura, que tão bem nos representava, sumiu. Isso mesmo sumiu. Mas a mágica não estaria completa se outra não surgisse em seu lugar. Confesso que, a princípio, não percebi a mudança. Talvez por não acreditar que a insensatez existisse mesmo. Como alguém poderia querer mudar “um time” que está ganhando? – pensei na minha ingenuidade. Tive que olhar várias vezes para a “nova escultura” para poder acreditar. Lá está – agora – o “velho” Miguel Arraes, acenando seu mais poderoso símbolo: “o chapéu de palha”. Não estou dizendo que o ex-governador não mereça uma escultura. Mas, a questão é: se ele não fosse avô do atual governador – Eduardo Campos -, será que a antiga escultura (que tão bem representava Pernambuco, repito) teria sido substituída? Isso parece ser uma “besteira”? Completamente sem importância e sem relevância? Pensar assim é um grande perigo. As coisas simples revelam grandes verdades! Tudo isso demonstra, de forma inequívoca, como nossos políticos tratam “a coisa pública”. E se o próximo governador quiser homenagear seu avô também? Quem vai pagar o novo mármore? E a nova escultura? Percebem? A menos que o governador tenha bancado do seu próprio bolso (e mesmo assim não justificaria a mudança), o que duvido muito, o contribuinte, mais uma vez, pagou a conta. Inclusive aqueles que, politicamente falando, são inimigos de Arraes e de todas as suas crias. Nobres políticos, caro governador, não tratem o que é público (inclusive os recursos) como se fora particular. O Estado não lhes pertence. Da próxima vez que quiserem mudar “as mobilhas”, mudem-nas de suas próprias casas; e, não esqueçam: façam isso com seus próprios recursos. Texto publicado no Diário de Pernambuco de 01/02/09.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

SOBERANIA DE DEUS E A LIBERDADE HUMANA

Fábio José Barbosa Correia[1]


1 Introdução

Ao analisarmos a história, tanto do pensamento religioso como do pensamento filosófico, perceberemos que existe certo modelo cíclico na abordagem de grandes temas da humanidade e não uma linearidade absoluta, que preconizaria a existência de temas totalmente novos e de número praticamente incontável. Mas, certamente, não é isso que ocorre. As mesmas questões são objeto de investigação nas mais variadas culturas e gerações. Essa recorrência acaba estabelecendo um número extremamente limitado do que podemos chamar de “os grandes problemas da humanidade”.
Segundo Wright, fazem parte dessa lista:

A relação da unidade do mundo com a diversidade de nossa experiência individual, como podemos estar certos do conhecimento que temos, se há Deus ou não, a natureza da “substância” de que o mundo é feito e como devemos navegar nas questões éticas (WRIGHT, 1998, p.19).

Kayper trata esse assunto de forma ainda mais sintética e apresenta a seguinte lista: “Nossa relação com Deus, nossa relação com o homem e nossa relação com o mundo” (KUYPER, 2002. p, 28).
Todas as outras discussões são derivadas, direta ou indiretamente, dessas grandes abordagens. Um dos mais persistentes desses problemas e que tem ocupado a mente dos mais importantes pensadores, é o que trata sobre a liberdade das ações humanas em contrapartida com a causalidade.

É nossa vontade realmente livre de causas e influências, ou são todas as nossas ações “predeterminadas” de algum modo?

Na filosofia, o debate reaparece no binômio paradoxal entre autonomia versus determinismo. A máxima da antropologia socrática: “conhece-te a ti mesmo”, apresenta uma consciência humana autônoma, de forma que o caminho da verdade suprema deve ser encontrado “dentro” do próprio homem. Coube a Nietzsche, entretanto, a libertação absoluta de toda e qualquer forma de transcendência. O criador do “super-homem” chega a “matar” Deus em busca do diploma da liberdade absoluta, para outorgá-lo ao homem:

Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra. Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar em que vos fala de esperanças supraterrestres. São envenenadores, quer o saibam ou não. Não dão o menor valor à vida, moribundos que estão, por sua vez envenenados, seres de que a terra se encontra fatigada; vão se por uma vez! (NIETZSCHE, 1994, p.30)

E ainda:

Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste acto não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu acto mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda história até hoje! (NIETZSCHE. Fredrich. A Gaia Ciência, §125).

A ciência[2], por sua vez, toma emprestado, da filosofia, o termo determinismo e o transforma na principal base do conhecimento científico da natureza, para afirmar a existência de relações fixas e necessárias entre os seres e os fenômenos naturais, isto é, o que acontece não poderia deixar de acontecer porque são conseqüências de causas anteriores.

Nosso maior enfoque, porém, neste ensaio, será teológico. O problema é tratado, primordialmente, entre as culturas religiosas, como sendo a relação entre a vontade humana e a soberania divina, ou ainda, mais especificamente, como a relação entre livre-arbítrio e predestinação ou predeterminação.
Não é raro encontrarmos posturas extremadas, ora beneficiando a total soberania divina e a negação total da liberdade humana, o que faria de Deus o autor do pecado e do mal ora evidenciando a total liberdade humana, o que não só nega a soberania de Deus como o reduz a um mero “registrador” da vontade do homem.

Um dos principais exemplos da negação total da vontade humana pode ser encontrado no Hinduísmo. Considerada a mais velha religião ainda existente no mundo, tem no conceito de estratificação social das castas[3] o exemplo máximo da aceitação do condicionamento, por fatores externos, da vida. Um indivíduo que nasce em uma determinada casta, julgada inferior, jamais pode ascender para uma casta superior, e, isso, determinará todo o seu futuro.

Os mulçumanos[4] também figuram entre os principais exemplos de negação da vontade humana. Para eles, não há espaço para a atuação “livre” do homem, uma vez que professam um determinismo absoluto, que não deixa lugar no mundo para as verdadeiras relações de causa e efeito, já que todas as ações, boas e más, foram “criadas” pelo insondável decreto de Alá.

Não podemos deixar de citar aqui também, entre aqueles que negam completamente qualquer tipo de liberdade humana, o hipercalvinismo[5].

Em contrapartida à negação total da liberdade do homem, temos o outro extremo: as tendências religiosas que intensificam o livre-arbítrio de tal forma que chegam a ofuscar a soberania de Deus, como o pelagianismo romano e, principalmente, o arminianismo da maioria das igrejas evangélicas pós-reforma protestante. Nesse sentido, Wright denuncia a “manipulação genética” que essas igrejas estão fazendo em Deus, retirando-lhe atributos que são próprios e exclusivos de sua natureza divina, simplesmente para “acomodar a suposição da autonomia humana” (WRIGHT, 1998, p.14).

Como pudemos perceber acima, a busca cíclica do homem por novas respostas a antigos problemas – ora beneficiando a liberdade do homem ora excluindo-a por completo, em nome da soberania divina, tende a continuar. O homem só se fixará em um sistema de resposta convincente quando entender, como afirma A.W.Pink, em seu famoso livro “Deus é Soberano”, que as duas sentenças são verdadeiras, em certo sentido: O homem é livre e responsável pelos seus atos e, ao mesmo tempo, Deus é Soberano.

O Calvinismo é esse poderoso sistema, não somente teológico, mas de vida. Hermeticamente fechado, atende aos interesses mais profundos da humanidade, tanto da alma quanto da racionalidade. O Calvinismo reconhece Deus como Deus, soberano, acima de tudo e de todos; ao mesmo tempo em que entende o homem, na sua situação pré-queda, como livre e pós-queda, como uma criatura decaída. O Calvinismo entende o homem e o próprio Deus, pelo prisma das Sagradas Escrituras; ao mesmo tempo que se distancia do misticismo, abrindo, com isso, uma importante janela para o desenvolvimento e a racionalidade, aproxima-se, de forma profunda e coerente, com a antropologia e teologia da revelação escrita.

Kuyper, comentando sobre o sistema de vida calvinista, faz a seguinte afirmação:

Não há dúvida, então, de que o Cristianismo está exposto a grandes e sérios perigos. Dois sistemas de vida estão em combate mortal. O Modernismo está comprometido em construir um mundo próprio a partir de elementos do homem natural, e a construir o próprio homem a partir de elementos da natureza; enquanto que, por outro lado, todos aqueles que reverentemente humilham-se diante de Cristo e o adoram como o Filho do Deus vivo, e o próprio Deus, estão resolvidos a salvar a “herança cristã”. Esta é a luta na Europa, esta é a luta na América, e esta também é a luta por princípios em que meu próprio país está engajado, e na qual eu mesmo tenho gasto todas as minhas energias por quase quarenta anos.Nessa luta apologética não temos avançado um único passo. Os apologistas invariavelmente começam abandonando a defesa assaltada, a fim de entrincheirarem-se covardemente um revelim atrás deles. Desde o início, portanto, tenho sempre dito a mim mesmo, -“Se o combate deve ser travado com honra e com esperança de vitória, então, princípio deve ser ordenado contra princípio. A seguir, deve ser sentido que no Modernismo, a imensa energia de um abrangente sistema de vida nos ataca; depois também, deve ser entendido que temos de assumir nossa posição em um sistema de vida de poder, igualmente abrangente e extenso. E este poderoso sistema de vida não deve ser inventado nem formulado por nós mesmos, mas deve ser tomado e aplicado como se apresenta na História. Quando assim fiz, encontrei e confessei, e ainda sustento, que esta manifestação do princípio cristão nos é dada no Calvinismo (KUYPER, 2002, p.19).

Certamente uma análise cuidadosa dos princípios calvinistas acerca da Soberania de Deus e da liberdade humana trará grande luz, capaz de iluminar os recantos mais obscuros desse antigo problema da humanidade.

2 Soberania que cria liberdade

O famoso filme do diretor Stevan Spilberg, “inteligência artificial”, aborda a idéia de um robô criado para ter uma relação de perfeição com seu “dono”. Programado para ter um amor incondicional, o menino-robô surge como um ser “absolutamente perfeito”; criado para fazer tão somente aquilo que agrada aos seus compradores/familiares.

Baseados na ideia do filme, levantamos a seguinte questão: acaso Deus não poderia ter criado o homem com tal nível de programação a ponto de ter como “único” desejo o serviço a seu criador, da maneira como este estabelecesse, previamente, em sua própria programação? É claro que sim.

O fato é que aprouve a Deus, em Sua soberania, diferentemente de Spilberg, criar não somente o homem, mas criar também sua própria liberdade e autonomia. Aprouve a Deus criar o homem livre.
Essa liberdade, porém, outorgada por Deus ao homem, precisa, à luz do calvinismo, ser entendida dentro do contexto histórico-temporal de “antes-queda” e “pós-queda”. Diferentemente da visão pelagiana/arminiana, para o calvinismo a inserção do pecado, via “escolha-livre-do-homem”, que resolveu, pelo seu próprio arbítrio e vontade, transgredir as expressas ordens do seu criador (direito concedido por Ele mesmo), trouxe para si mesmo uma drástica mudança em sua natureza. Mesmo tendo sido solenemente alertado sobre essa conseqüência, pelo seu criador, “decidiu”, sozinho, ser agente ativo e consciente dessa mudança.

2.1 Liberdade que decide não ter liberdade

2.1.1. Situação Pré-queda do homem

Agostinho costuma dizer que a antropologia bíblica poderia ser dividida em três fazes. Na primeira delas, antes da queda, “o homem podia não pecar”. É seguindo esses mesmos passos que o calvinismo entende a situação de liberdade do homem, antes da queda.
Passaremos a analisar os principais documentos calvinistas que tratam da criação da liberdade do homem.

A confissão de Fé de Westminster, formulada no século XVII por cerca de 121 teólogos calvinistas, faz a seguinte afirmação, no capítulo que trata sobre a criação:

Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-as de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações, e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era mutável (WESTMINSTER, 1999, IV.II).


Um importante teólogo calvinista comentando sobre o que possibilitou que Adão e Eva pecassem apresenta o seguinte motivo:

Deus os deixou à liberdade da sua própria vontade, em vez de usar da sua onipotência para impedi-los de pecar. Por ser onipotente, Deus com certeza poderia ter impedido a raça humana de cair em pecado. Mas em Sua sabedoria não escolheu impedir a queda. Como Deus conteve a Sua onipotência e deixou Adão e Eva à própria vontade deles, foi-lhes plenamente possível optarem por cometer o pecado (GEERBARDUS, 2007, p.87).


Ainda sobre a criação da liberdade do homem:

O homem é a única das criaturas dentre as que Deus criou que é consciente de si mesma. Deus fez o homem à sua imagem mental e moral. O Dr.Albertus Pieters diz: “isso compreende o poder autoconsciente de raciocinar, a capacidade da autodeterminação e o senso moral. Em outras palavras, ser uma criatura que pode dizer “Eu sou”, eu devo, eu irei” – isso é o que significa ser feito à imagem de Deus (VAN HORN, 2000, p.25).


Outro importante teólogo calvinista, o holandês Berkhof, ainda comentando sobre a criação da liberdade, afirma:

Sua condição era preliminar e temporária, podendo levar a maior perfeição e glória ou acabar numa queda. Foi por natureza dotado daquela justiça original que é a glória máxima da imagem de Deus e, consequentemente, vivia num estado de santidade positiva. A perda daquela justiça significaria a perda de uma coisa que pertencia à própria natureza do homem em seu estado ideal. O homem podia perdê-la e ainda continuar sendo homem, mas podia não perdê-la e continuar sendo o homem no sentido ideal da palavra (BERKHOF, 1990, p.209).


Cremos que já ficou claro o suficiente que o calvinismo entende que o homem, em seu estado natural, possuía o que costumeiramente é chamado de livre-arbítrio. No entanto, não podemos encerrar essa cessão sem antes verificarmos o capítulo da Confissão de Westminster que trata especificamente sobre a criação da liberdade ou do livre-arbítrio do homem:

Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta da sua natureza. Tiago 1:14; Deut. 30:19; João 5:40; Mat. 17:12; At.7:51; Tiago 4:7. O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder. Ec. 7:29; Col. 3: 10; Gen. 1:26 e 2:16-17 e 3:6 (WESTMINSTER, 1999, IX. I, II).


2.1.2 Situação Pós-queda do homem


Precisamente neste ponto começam as divergências sobre a antropologia Bíblica. Que o homem (em sua situação pré-queda) era livre em seu arbítrio, agostinianos e pelagianos, calvinistas e arminianos, andam juntos. A bifurcação teológica, entretanto, perpassa pelas conseqüências dessa “escolha consciente” em não obedecer e não levar em conta as ameaças solenes de Deus.

Para Pelágio essas conseqüências foram graves mas, apesar disso, ela não afetou a “natureza do homem”. Para ele, “a liberdade é o bem supremo, a honra e a glória do homem, o bonum naturae, que não pode ser perdido [...]. Essa habilidade é dada ao homem por Deus na criação, e é um aspecto essencial da natureza constitutiva do homem” (SPROUL, 2001, p.32). Ele acreditava que a natureza do homem continuou sendo livre e boa, da mesma forma como foi integralmente criada.

Armínius, não concordava com Pelágio, relativamente às conseqüências da queda para a natureza do homem e entendia, em certo sentido, ser necessário o auxílio da graça divina para o homem voltar a obedecer. No entanto, em sua opinião, essa graça não é um fim em si mesma e que a regeneração é gradativa e não instantânea, depende, inclusive, da santificação enquanto processo. “Ele declara que esta obra da regeneração e iluminação não é completada num momento; mas [...] é elevada e promovida de tempos em tempos, pelo crescimento diário” (SPROUL, 2001, p141).

Em última instância e para finalizar aqui essa exposição da antítese do calvinismo, Armínius acreditava que, de alguma forma, havia restado, mesmo depois da queda, algum tipo de liberdade no homem; uma porção de livre-arbítrio o que, indiscutivelmente, o aproxima de Pelágio, conforme demonstra Sproul, citando Armínius:

Todas as pessoas não-regeneradas tem liberdade de vontade e uma capacidade para resistir ao Espírito Santo, para rejeitar a oferta da graça de Deus, para rejeitar a oferta da graça de Deus, para desprezar o evangelho e para não abrir àquele que bate à porta do coração; e essas coisas eles realmente podem fazer sem qualquer diferença entre o eleito e o répobro (SPROUL, 2001, p.143).


Diferentemente de Pelágio e Armínius a visão calvinista entende que, com a queda, o homem torna-se “totalmente depravado” em todas as suas instâncias e assim como Agostinho, nessa nova realidade o homem “não pode não pecar”.

Sobre os efeitos da queda, afirma a Confissão de Fé de Westminster:


Por este pecado eles decaíram da sua retidão original e da comunhão com Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramente corrompidos em todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma. Gen. 3:6-8; Rom. 3:23; Gen. 2:17; Ef. 2:1-3; Rom. 5:12; Gen. 6:5; Jer. 17:9; Tito 1:15; Rom.3:10-18. IV. Desta corrupção original pela qual ficamos totalmente indispostos, adversos a todo o bem e inteiramente inclinados a todo o mal, é que procedem todas as transgressões atuais. Rom. 5:6, 7:18 e 5:7; Col. 1:21; Gen. 6:5 e 8:21; Rom. 3:10-12; Tiago 1:14-15; Ef. 2:2-3; Mat. 15-19 (WESTMINSTER, 1999, VI.II).


O mesmo documento ainda expõe de forma clara que o homem, que antes era detentor do “livre-arbítrio”, com a queda perde-o inteira e totalmente, nada restando.

O homem, caindo em um estado de pecado, perdeu totalmente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação, de sorte que um homem natural, inteiramente adverso a esse bem e morto no pecado, é incapaz de, pelo seu pr6prio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso. Rom. 5:6 e 8:7-8; João 15:5; Rom. 3:9-10, 12, 23; Ef.2:1, 5; Col. 2:13; João 6:44, 65; I Cor. 2:14; Tito 3:3-5. (WESTMINSTER, 1999, IX.III).

E ainda:

Todo o pecado, tanto o original como o atual, sendo transgressão da justa lei de Deus e a ela contrária, torna, pela sua própria natureza, culpado o pecador e por essa culpa está ele sujeito à ira de Deus e à maldição da lei e, portanto, exposto à morte, com todas as misérias espirituais, temporais e eternas. I João 3:4; Rom. 2: 15; Rom. 3:9, 19; Ef. 2:3; Gal. 3:10; Rom. 6:23; Ef. 6:18; Lam, 3:39; Mat. 25:41; II Tess. 1:9 (WESTMINSTER, 1999, VI.VI).

Os Cânones de Dort, outro documento calvinista, elaborado em 1618 em contra-argumentação ao documento apresentado pelos seguidores de Armínius em 1609, na Holanda, que ficou conhecido como “Remonstrance”, faz a seguinte afirmação acerca da situação pós-queda do homem:

Sua vontade e seu coração eram retos, todos os seus afetos puros [...]. Mas, desviando-se de Deus [...] Pela sua própria livre vontade, ele se privou destes dons excelentes. Em lugar disso trouxe sobre si cegueira, trevas terríveis, leviano e perverso juízo em seu entendimento; malícia, rebeldia e dureza em sua vontade e seu coração; também impureza em todos os seus afetos (DORT, 1996, III.I).


Lutero também subscrevia integralmente o pensamento de Calvino quanto à situação pós-queda. Em sua obra “nascido escravo”, um famoso debate com Erasmo de Roterdan, faz a seguinte afirmação:

Erasmo [...] você assevera que o “livre-arbítrio” é a capacidade que a vontade humana tem, por si mesma, de decidir [...]. Os pelagianos também fizeram isso. Mas você os ultrapassa! [...]. Prefiro até mesmo o ensinamento de alguns dos antigos filósofos aos seus. Eles diziam que um homem entregue a si mesmo só faria o errado. O homem só poderia escolher o bom com a ajuda da graça divina. Eles diziam que os homens são livres para decair, mas que precisam de ajuda para elevarem-se! Porém, é motivo de riso chamar a isso de “livre-arbítrio”. Com base em tais conceitos, eu poderia afirmar que uma pedra tem “livre-arbítrio”, pois só pode cair, a menos que seja erguida por alguém! O ensino daqueles filósofos, põem, ainda é melhor do que o seu. A sua pedra, Erasmo, pode escolher se sobe ou desce! (LUTERO, 1988, p.41).

O Catecismo Maior de Westminster dá a seguinte resposta à pergunta de n° 23: Em que estado a queda deixou a humanidade?: “A humanidade por causa da queda foi deixada em estado de pecado e de miséria” (CATECISMO MAIOR, 2007. 23).
Comentando sobre os resultados imediatos da queda e a situação em que ficou o homem, Berkhof faz a seguinte afirmação:

O concomitante imediato do primeiro pecado e, portanto, dificilmente um resultado dele no sentido estrito da palavra, foi a depravação total da natureza humana. C contágio do seu pecado espalhou-se imediatamente pelo homem todo, não ficando sem ser tocada nenhuma parte da natureza, mas contaminando todos os poderes e faculdades do corpo e da alma [...]. Esta mudança da condição real do homem refletiu-se também em sua consciência [...]. Não somente a morte espiritual, mas também a morte física resultou do primeiro pecado do homem (BERKHOF, 1990.p.227).

2.1.2.1 A decisão que afeta a posteridade

Os principais documentos calvinistas reconhecem que, em Adão, toda a sua descendência pereceu e que as mesmas conseqüências advindas sobre Adão passaram também, numa espécie de “transmissão hereditária”, para sua descendência: “Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o delito dos seus pecados foi imputado a seus filhos; e a mesma morte em pecado, bem como a sua natureza corrompida, foram transmitidas a toda a sua posteridade, que deles procede por geração ordinária”. At. 17:26; Gen. 2:17; Rom. 5:17, 15-19; I Cor. 15:21-22,45, 49; Sal.51:5; Gen.5:3; João3:6 (WESTMISNTER, 1999, VI.III).

Os Cânones de Dort afirmam o seguinte, sobre esse assunto:

Depois da queda, o homem corrompido gerou filhos corrompidos. Então a corrupção, de acordo com o justo julgamento de Deus, passou de Adão até todos os seus descendentes, com exceção de Cristo somente. Não passou por imitação, como os antigos pelagianos afirmavam, mas por procriação da natureza corrompida. Portanto, todos os homens são concebidos em pecado e nascem como filhos da ira, incapazes de qualquer ação que o salve, inclinados para o mal, mortos em pecados e escravos do pecado. Sem a graça do Espírito Santo regenerador nem desejam nem tampouco podem retornar a Deus, corrigir suas naturezas corrompidas ou ao menos estar dispostos para esta correção. (DORT, 1996, III.II, III).


O breve Catecismo de Westminster responde da seguinte forma à pergunta 16: Todo o gênero caiu pela transgressão de Adão? “Visto que o pacto foi feito com Adão, não só para ele, mas também para a sua posteridade, todo gênero humano, que procede por geração ordinária, pecou nele e caiu com ele na sua primeira transgressão” (BREVE CATECISMO, 2000. 16).

3 A soberania que resgata a liberdade

Como vimos, os principais representantes da doutrina calvinista são unânimes em afirmar a situação do homem pós-queda como uma situação de morte espiritual e total depravação de todo o seu ser.
A expulsão do homem do paraíso, registrada em Gêneses, como uma das conseqüências de seu pecado, tem sido entendida “simplesmente” como um ato punitivo de Deus e de fato foi; mas não só. Esse ato pode ser entendido também como uma providência benevolente de Deus para que o homem, agora decaído, não permanecesse eternamente nessa situação. Nesse sentido, o Breve Catecismo de Westminster responde da seguinte forma à indagação n° 20: Deixou Deus todo gênero humano perecer no estado de pecado e miséria?: “Tendo Deus, unicamente pela sua boa vontade, desde toda a eternidade escolhido alguns para a vida eterna, entrou com eles em um pacto de graça, para livrá-los do estado de pecado e miséria e os levar a um estado de salvação por meio de um redentor” (BREVE CATECISMO, 2000. 20).

Geerbardus, teólogo calvinista, comentando sobre essa questão faz a seguinte afirmação:
Deus salva os seus eleitos tão somente por causa de seu amor e misericórdia. Isso é, nada obriga Deus salvar nenhuma parte da raça humana, mas Ele, na verdade, por causa do Seu amor e misericórdia, desejou e planejou a salvação de alguns deles [...]. E não há parcialidade nem injustiça nisso, pois Deus não deve a salvação a ninguém. Todos pecaram contra ele, perderam todo o direito e Ele nada deve a ninguém senão condenação (GEERBARDUS, 2007. p.110).

Na visão calvinista, para essa situação pós-queda em que o homem se meteu, só há uma esperança de reversão desse tenebroso quadro: uma intervenção externa e soberana que só Deus pode realizar, dando-lhe vida novamente, tirando-lhe do estado de miséria e morte espiritual, devolvendo a vida e com ela a liberdade:

Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho e beneplácito da sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado, escolheu em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados para a vida; para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu de sua mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé, ou de boas obras e perseverança nelas, ou de qualquer outra coisa na criatura que a isso o movesse, como condição ou causa. Ref. Ef. 1:4, 9, 11; Rom. 8:30; II Tim. 1:9; I Tess, 5:9; Rom. 9:11-16; Ef. 1: 19: e 2:8-9 (WESTMINSTER, 1999, III, V).

E ainda:

Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça. Ref. João 15:16; At. 13:48; Rom. 8:28-30 e 11:7; Ef. 1:5,10; I Tess. 5:9; 11 Tess. 2:13-14; IICor.3:3,6; Tiago 1:18; I Cor. 2:12; Rom. 5:2; II Tim. 1:9-10; At. 26:18; I Cor. 2:10, 12: Ef. 1:17-18; II Cor. 4:6; Ezeq. 36:26, e 11:19; Deut. 30:6; João 3:5; Gal. 6:15; Tito 3:5; I Ped. 1:23; João 6:44-45; Sal. 90;3; João 9:3; João6:37; Mat. 11:28; Apoc. 22:17 (WESTMINSTER, 1999, X,I).

Para maiores esclarecimentos sobre esse tópico recomendamos uma análise mais detalhada sobre o segundo e terceiro pontos da sistematização doutrinária do calvinismo: Eleição Incondicional e Expiação Limitada, respectivamente, o que não faremos aqui por motivo de delimitação dessa abordagem.

3.1 A mudança no conceito de liberdade em benefício do homem

Diferentemente da liberdade que dispunha o homem, antes da queda – não tendia nem para o bem nem para o mal -, de forma que essa liberdade não sofria nenhuma pressão de natureza, a liberdade que Deus devolve, tão somente aos eleitos, é uma liberdade segundo sua nova natureza.
Agostinho resumia essa terceira fase de sua antropologia dizendo que após a operação da graça de Deus que Re-vivifica o homem, tirando-o do estado de perdição para o estado de salvação, “o homem não pode pecar”.

Interessante notarmos que no capítulo que trata sobre o livre-arbítrio, a Confissão de Fé de Westminster descreve um novo tipo de liberdade: uma liberdade que conduz o homem, devido à nova semente de vida plantada no seu coração, pelo próprio Deus, a decidir e a querer apenas o bem e às coisas que o conduz cada vez mais próximo de Deus. Contudo, isso não deve ser traduzido como uma “nova escravidão da vontade” e sim como uma Re-criação de uma vontade que agora se coaduna com a sua nova natureza. Essa vontade, no entanto, ainda está condicionada pelas contingências desse mundo, de forma que pode em algum momento variar para o que é mau, mas não de forma “natural” e essencial. Essa espécie de “vontade livre para o bem”, que denota também uma espécie de “homem ideal”, ocorrerá definitivamente tão somente nos céus – habitação final e eterna dos eleitos – mas, ocorrerá. Vejamos textualmente o documento calvinista:

Quando Deus converte um pecador e o transfere para o estado de graça, ele o liberta da sua natural escravidão ao pecado e, somente pela sua graça, o habilita a querer e fazer com toda a liberdade o que é espiritualmente bom, mas isso de tal modo que, por causa da corrupção, ainda nele existente, o pecador não faz o bem perfeitamente, nem deseja somente o que é bom, mas também o que é mau. Col.1: 13; João 8:34, 36; Fil. 2:13; Rom. 6:18, 22; Gal.5:17; Rom. 7:15, 21-23; I João 1:8, 10. É no estado de glória que a vontade do homem se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só. f. 4:13; Judas, 24; I João 3:2 (WESTMINSTER, 1999, IX, IV, V).

No capítulo que trata especificamente da liberdade cristã (dos eleitos, agora regenerados) o mesmo documento anteriormente citado faz a seguinte afirmação:

A liberdade que Cristo, sob o Evangelho, comprou para os crentes consiste em serem eles libertos do delito do pecado, da ira condenatória de Deus, da maldição da lei moral e em serem livres do poder deste mundo. do cativeiro de Satanás, do domínio do pecado, do mal das aflições, do aguilhão da morte, da vitória da sepultura e da condenação eterna: como também em terem livre acesso a Deus, em lhe prestarem obediência, não movidos de um medo servil, mas de amor filial e espírito voluntário. Todos estes privilégios eram comuns também aos crentes debaixo da lei, mas sob o Evangelho, a liberdade dos cristãos está mais ampliada, achando-se eles isentos do jugo da lei cerimonial a que estava sujeita a Igreja Judaica, e tendo maior confiança de acesso ao trono da graça e mais abundantes comunicações do Espírito de Deus, do que os crentes debaixo da lei ordinariamente alcançavam. Tito 2:14; I Tess. 1: 10; Gal. 3:13; Rom. 8: 1; Gal. 1:4; At. 26:18; Rom. 6:14; I João 1:7; Sal. 119:71; Rom. 8:28; I Cor, 15:54-57; Rom. 5l: 1-2; Ef. 2:18 e 3:12; Heb. 10: 19; Rom. 8:14. 15; Gal. 6:6; I João 6:18; Gal. 3:9, 14, e 5: 1; At. 15: 10; Heb. 4:14, 16, e 10: 19-22; João 7:38-39; Rom. 5:5 (WESTMINSTER, 1999, XX.I).


A garantia de que essa liberdade jamais terá fim (diferentemente do estado transitório da liberdade inicial) está sintetizada no último ponto da antítese calvinista à Remostrance, sob o título Perseverança dos Santos.



Conclusão

O Calvinismo não só é uma resposta convincente ao grande problema da humanidade, sintetizada no binômio Soberania de Deus versus Liberdade humana, ou ainda, como trata a filosofia: Liberdade versus necessidade.

Ele é um poderoso sistema de vida, hermeticamente fechado, capaz de responder às questões mais difíceis em todos os níveis e áreas do conhecimento humano. O calvinismo é um dos poucos sistemas que evidencia na prática seus pressupostos teóricos: a humanidade caminha a passos largos em direção à maldade, chegando cada vez mais próximo da perfeição, evidenciando, de forma inconteste a sua “depravação total”.

Os eleitos, em contrapartida, (calvinistas e não calvinistas), demonstram com suas vidas uma atitude diferenciada; fruto da inclusão, por amor, de sua “nova vontade” – livre para o bem – no seu coração, pela graça de Deus. Os eleitos calvinistas, por sua vez, desenvolvem uma ética tão peculiar que pode ser vista e não negada, mesmo por aqueles que, intrinsecamente, estão distanciados desse sistema, como bem observa Weber:

O Deus de Calvino exigia de seus crentes não boas ações isoladas, mas uma vida de boas ações combinadas em um sistema unificado. Mas no curso de seu desenvolvimento, o calvinismo acrescentou algo de positivo a isso tudo, ou seja, a idéia de comprovar a fé do indivíduo pelas atitudes seculares. [...] consideramos apenas o calvinismo e adotamos a doutrina da predestinação como arcabouço dogmático da moralidade puritana, no sentido de racionalização metódica da conduta ética.(WEBER, 2004. p.91,94,96).

BIBLIOGRAFIA


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BÍBLIA. Português. Bíblia de estudos de Genebra. Trad. de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. 1710 p.
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CATECISMO MAIOR. Westminster. São Paulo: CEP, 2007, 115p
DORT: Os Cânones. Contra o Arminianismo. São Paulo: Ed.Cultura Cristã, 1996. p
GEERBARDUS, Jabannes. Catecismo Maior comentado. São Paulo: Puritanos, 2007, 656p
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NIETZSCHE,W.F. Assim Falou Zaratustra. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: 1994. 7ª Edição
SPENCER. Duane Edward. Tulip. Trad.Walter Graciano.Cambuci-SP: 1992. 117p
SPROUL, R.C. Sola gratia: a controvérsia sobre o livre arbítrio na história. São Paulo: editora Cultura Cristã, 2001. 239 p.
HORN VAN. Leonard. Estudos no Breve Catecismo. São Paulo: Puritanos, 2000, 198p
WEBER. Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo-SP: Martin Claret, 2002. 230p
WESTMINSTER. Confissão de Fé. São Paulo: CEP: 1999, 96p









[1] Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco -UFPE, Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Licenciado em Educação Religiosa pelo Seminário Presbiteriano do Norte – SPN. Atualmente é professor de Introdução à Filosofia e Ética da Faculdade Decisão – FADE. E-mail: fabiobcorreia@hotmail.com

[2] O determinismo constitui um princípio da ciência experimental que se fundamenta pela possibilidade da busca das relações constantes entre os fenômenos. Essa teoria afirma que o comportamento humano é condicionado por três fatores: genética, meio e momento. Os deterministas pensam que todos os acontecimentos do universo estão de acordo com as leis naturais, ou seja, que todo fenômeno é condicionado pelo que precede e acompanha. Não crêem no acaso, nem no sobrenatural, propondo sempre uma investigação na causa dos fenômenos, sem aceitar que aconteceu porque tinha de acontecer. Uma bola de bilhar arremessada com determinada força e direção só poderá percorrer um único caminho que poderá ser traçado com perfeição se todas as variáveis puderem ser levadas em conta, portanto, seu comportamento é determinado pela acção que a causou. Assim, segundo o determinismo, você não pode optar por um sorvete de chocolate ou baunilha, o que ocorre é a ilusão de escolha. Seja qual for a opção que tomar, ela já estaria pré-determinada por toda a sua trajetória de vida e de toda a humanidade antes dela. O que acontece é que as variáveis ocorridas no ato tendem ao infinito, causando, assim, a ilusão de livre-arbítrio ou escolha, conforme: http://pt.wikipedia.org/wiki/Determinismo.
[3]A sociedade de castas é marcada pela rigidez na hierarquização. Baseia-se na hereditariedade, na profissão, na etnia, na religião, determinando uma situação de respeitabilidade. A definição desses critérios ocorre a partir de um conjunto de valores, hábitos e costumes definidos pela tradição. O sistema de castas assenta-se numa relação de privilégios que alguns indivíduos possuem em detrimento dos demais. Esse tipo de organização social parte do pressuposto de que os direitos são desiguais por natureza, uma vez que os elementos que os caracterizam são definidos fora dos indivíduos - por exemplo, o critério para a definição de cargos e profissões se dava pela hereditariedade (o guerreiro, o sacerdote fariam os seus filhos também guerreiros e sacerdotes). Pode-se dizer que, nas sociedades antigas, a organização social baseava-se no sistema de castas. As desigualdades políticas, jurídicas, religiosas, etc. expressavam-se através do lugar que o indivíduo ocupava na estrutura de cargos e profissões, definidos pela hereditariedade, em primeiro plano. Ainda hoje existe na Índia o sistema de castas, embora modificado, pois coexiste com um sistema de classes sociais; mesmo assim, o estudo dessa sociedade pode nos oferecer vários elementos para a compreensão dessa ordem social. Uma das características que marcaram a estratificação social hindu foi a hereditariedade; o nascimento era a condição básica para se definir uma dada posição na ordem social Os pertencentes à casta inferior eram considerados impuros e não podiam nem sequer prestar serviços aos membros das outras castas superiores. A idéia era de que tudo o que os impuros tocassem ficava contaminado, seja alimento, água ou roupa. Apenas as castas puras (superiores) eram consideradas aptas a desempenhar funções públicas e a participar de determinadas atividades religiosas. As castas impuras eram praticamente segregadas, a elas não sendo permitido freqüentar escolas, templos etc. De forma absolutamente generalizada, é possível dizer que as quatro castas principais na Índia, durante muito tempo, foram: brâmane (casta superior a todas), chátria (casta intermediária formada pelos guerreiros), vaixiá (casta intermediária, mas abaixo da chátria, formada pelos comerciantes, agricultores e pastores) e a sudra ou pária (casta mais inferior), conforme: http://ialexandria.sites.uol.com.br/textos/israel_textos/conceito.htm.
[4] Os muçulmanos acreditam no qadar, uma palavra geralmente traduzida como predestinação, mas cujo sentido mais preciso é "medir" ou "decidir quantidade ou qualidade". Uma vez que para o islão Deus foi o criador de tudo, incluindo dos seres humanos, e sendo uma das suas características a onisciência, ele já sabia quando procedeu à criação as características de cada elemento da sua obra teria. Assim sendo, cada coisa que acontece a uma pessoa foi determinada por Deus, confome: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mul%C3%A7umano#Apredestina.
[5] Posição extremada dos argumentos teológicos do calvinismo. Como o próprio sufixo denota, não se trata da posição doutrinária calvinista. Os calvinistas, inclusive, reputam como não bíblicas as argumentações dos hipercalvinistas, que negam qualquer possibilidade de causa e contingência, e afirmam que o homem jamais possuiu livre-arbítrio, nem mesmo antes da queda, e que foi predestinado para cair.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

FORMAS DE ENFRENTAMENTO DA VERDADE

Ao contrário do que muitas pessoas pensam, não existe apenas uma forma de enfrentamento (interpretação) da verdade. Tomando-se o objeto água como exemplo: para um químico (ciência) ela é H2O; para uma pessoa que está com sede, ela é gelada ou fria, própria ou imprópria para o consumo. Qual dessas duas formas de interpretação da "verdadede" sobre a água está correta? Apenas a científica? Obvio que não. Na idade Medieval, a "verdade" era estabelecida pela religiosidade. A "verdade" era apresentada num formato de dogma, que por definição não pode ser contestado. Isso rendeu a essa era da história o título de "idade das trevas". Hoje em dia, criou-se no incosciente coletivo que "verdade" é tão somente aquilo que a Ciência diz que é "verdade". Ninguém ousa questionar. Não há nenhuma crítica a essa postura, diferentemente de quando a "verdade" era imposta pela religiosidade. Indubtavelmente a verdade Científica, paradoxalmente, acabou tornando-se um "dogma" também. Nesse sentido, vivemos a mesma situação do medievo. Precisamos saber que não há apenas o modelo científico de enfrentamento (interpretação) da verdade. Existem muitos outros modelos. Destacaremos os seguintes modelos de "entendimento", de "interpretação", de "enfrentamento" da verdade:

1) Dogmatismo: Posição que não reconhece a “problemática do conhecimento” (se a verdade está no objeto ou no observador, por exemplo). Muito embora as dificuldades levantadas pela teoria do conhecimento sejam suficientemente comprovadas, os "dogmáticos" insistem, irracionalmente, em negá-las. O conhecimento não se dá por meio de interação entre o sujeito e o objeto. Acredita que os objetos possuem suas próprias verdades e estas são absolutas. Expõe sua posição sem uma análise mais criteriosa e/ou crítica. É unilateral, isto é, tem uma direção única de interpretação da realidade; por conta disso, gera uma postura rígida na vida e na ação. O vídeo a seguir nos ajudará a entender um pouco mais essa forma de enfrentamento da verdade.

2) Empirismo: considera que só é possível chegar à verdade por meio dos sentidos. Em última análise, verdade é tão somente aquilo que vemos, que tocamos, que sentimos, que experienciamos com nossos sentidos. Segundo Jhon Locke, empirista inglês, "Nada chega ao nosso conhecimento sem que primeiro tenha passado pelos nossos sentidos". O vídeo a seguir demonstrará de forma mais detalhada o conceito de verdade/realidade para o empirismo.


Mas, será mesmo que nossos sentidos "sempre" nos dizem a verdade? Até que ponto devemos formartar nosso conceito de realidade baseado nas idéias empiristas? Será mesmo que a ciência é a detentora da "verdade absoluta"? A maioria de nós acaba enclausurando-se nesse conceito materialista de verdade (verdade como sendo, unicamente, aquilo que pode ser manipulado, testado, experienciado, percebido pelos sentidos) - que é o conceito de verdade do senso comum e da ciência - sem, contudo, se dar conta que essa não é a "única" forma de enfrentamento ou de interpretação da verdade. Nossos sentidos (base da construção do conceito da verdade científica) muitas vezes se atrapalham diante das "armadilhas da percepção". É possível ver, sentir, tocar e mesmo assim não estarmos diante da realidade? Devido ao grau de contaminação do conceito de verdade do empirismo e do senso comum a que fomos submetidos, desde a infância, certamente, tenderemos a dizer que não. O vídeo a seguir tem o objetivo de nos alertar e de nos vacinar contra esse "veneno" que corre em nossas veias (conceito de verdade materialista). Não diga que seus olhos não estão vendo o que estão vendo!


Permita-me ainda insistir: É possível ver, sentir, tocar e mesmo assim não estarmos diante da realidade? Se a resposta for negativa, por dedução lógica, terá que acreditar que tudo que viu no vídeo anterior é real.
Observe também a figura abaixo. Olhe fixamente para o centro dela aproxime e afaste o olhar algumas vezes:

O que acontece? A figura está se movendo como se fora uma espécie de catraca? Pura armadilha da percepção. Nossos sentidos, ao contrário do que ensina o empirismo, podem nos enganar, servir como véus a encobrir a verdade

Agora fixe seu olhar por alguns segundos na bandeira da esquerda, na figura abaixo e em seguida olha para o quadrado branco da direita:


O que você viu? Jura que viu a bandeira brasileira em suas cores originais? Calma, você não está ficando louco(a). É só uma ilusão de ótica. Armadilha dos nossos sentidos. Armadilhas da percepção.

3) Teoria das Idéias de Platão: Para essa forma de enfrentamento (interpretação) da "verdade", ao contrário do empirismo, nossos sentidos atrapalham o conhecimento da "verdade". Fazem o papel de verdadeiros véus a encobir o real. A "verdade" não pode estar no tangível, no que é material, no que é passageiro. Só é possível alcançar a verdade através da razão. Apesar desse termo (idealismo) ter sido cunhado na modernidade, podemos aplicá-lo (há um certo consenso) para a teoria do conhecimento de Platão. Para explicar como se dá o processo do conhecimento e também para nos trazer um "novo" conceito de "verdade", Platão (estamos falando do século IV a.C), elaborou a "Alegoria da Caverna", transcrita abaixo:

O Mito da Caverna - Platão
Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para a frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior. A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e os prisioneiros - no exterior, portanto - há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas. Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam. Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda a luminosidade possível é a que reina na caverna. Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigindo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria. Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol, e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade. Libertado e conhecedor do mundo, o priosioneiro regressaria à caverna, ficaria desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los. Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo.

O vídeo abaixo nos ajudará a entender melhor essa forma de enfrentamento (de interpretação) da verdade. O vídeo mostrará também trecho do filme Matrix (que é um verdadeiro questionamento do conceito de verdade do senso comum e, consequentemente, da da ciência, baseado nas idéias de Platão), além disso, o vídeo mostrará também o Mito da Caverna na visão de Maurício de Souza:

Veja também uma paródia do filme Matrix no vídeo abaixo:

Por fim, quais as implicações práticas de ter consciência de que não existe apenas uma forma de enfrentamento (interpretação) da verdade? O que aprendemos, de prático, e que podemos aplicar em nosso cotidiano com as idéias de Platão? Apesar dos detalhes técnicos que envolvem a Algoria da Caverna de Platão (detalhes que, muitas vezes, só "nteressam" aos filósofos), as idéias de Platão são, de fato, alertadoras. Nos ensinam a sempre contestar, duvidar, criticar "as verdades" que se nos apresentam (ou aquilo que querem que entendamos como verdade). Essas críticas, questionamentos e dúvidas, entretanto, não devem ter fim em si mesmas (criticar por criticar), mas só possuem importância enquanto processo de investigação da verdade. Questionar, criticar e duvidar sempre! Esse é o antídoto prático trazido por Platão e que poderá evitar muitos processos de manipulação. Evitará que nos tornemos verdadeiras "marionetes" nas mãos dos detentores do poder (de qualquer tipo de poder). O vídeo a seguir é um bom exemplo (reduzido ao absurdo, claro) de como somos, mergulhados no senso comum, sem nenhum senso crítico e como isso pode ser devastadamente prejudicial. O filósofo alemão Karl Popper ensinava que "toda teoria (qualquer que seja) deve ser "falseada" (bombardeada com toda espécie de críticas e questionamentos), pois quanto mais se mantiver intacta, mas dígna de ser seguida". Torne-se um crítico, siga os conselhos práticas de Platão, não aceite a "verdade" sem antes enchê-la de crítica.

quarta-feira, 18 de março de 2009

OS EFEITOS PSICOLÓGICOS DO CALVINISMO NA VIDA DOS ELEITOS:

OS EFEITOS PSICOLÓGICOS DO CALVINISMO NA VIDA DOS ELEITOS:
Ética e Capitalismo: a possibilidade de uma existência simultânea na visão de Max Weber.
Fábio José Barbosa Correia
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Licenciado em Educação Religiosa pelo Seminário Presbiteriano do Norte - SPN. Atualmente é professor de Ética profissional, Introdução a Filosofia, Fundamentos Filosóficos e Filosofia da Educação da Faculdade Decisão – FADE. E-mail: fabiobcorreia@hotmail.com

INTRODUÇÃO

Na contramão do Marxismo, que julgava que as mudanças da economia possuíam como causas apenas fatores econômicos, Max Weber[1] faz brotar uma nova interpretação para a antiga questão. Utilizando a metodologia comparativa entre diversas economias, chega à conclusão que as mais desenvolvidas possuíam um traço em comum: a predominância protestante calvinista nos cargos importantes. Partindo dessa observação investiga até que ponto isso poderia ter influenciado o desenvolvimento do que chama de “espírito do capitalismo”. Não podemos negar, entretanto, a existência de outras tentativas de vincular questões religiosas a fatores econômicos, como no caso dos judeus, realizada por Werner Sombart, conforme observa Biéler, mas nenhuma se compara ao trabalho de Weber.

No começo de nosso século, outros autores procuraram estudar a ordem inversa dessas relações, com examinarem a influência das religiões sobre a vida econômica. Em 1911, Werner Sombart afirmava que os judeus tinham exercido decisiva influência sobre a evolução econômica em razão de suas aptidões étnicas, bem como de sua formação intelectual e religiosa (BIÉLER, 1990. p.621).

Procuraremos demonstrar suas idéias, além de nos “infiltrarmos” no calvinismo para entendermos com maior clareza o que sua sistematização doutrinária provoca na mente protestante calvinista, habilitando-a a criar um ambiente propício ao aparecimento desse “espírito”.
Historiadores diversos têm ensaiado determinar a influência de Calvino e do Calvinismo na implantação do sistema econômico moderno [...].Teses opostas se têm defendido alternadamente, uns fazendo de Calvino o pai espiritual, outros negando que uma influência moral ou espiritual possa ter qualquer efeito sobre o jogo das forças econômicas (BIÉLER, 1990. p.621).


ELUCIDANDO CONCEITOS

Antes da análise das investigações de Weber, é elucidatório termos em mente algumas asseverações que poderão facilitar nossa compreensão:

a) De “Protestantismo” devemos entender como sendo o fruto imediato da reforma protestante, ou seja, as igrejas reformadas e mais especificamente as igrejas que adotam uma linha de sistematização teológica calvinista. E nunca visualizar o retrato, fruto da mídia eletrônica, do que se denomina “igreja protestante” ou “evangélica” hoje em dia, sob pena de estarmos fora de sintonia com Weber. Esse alerta também é feito pelo professor Antonio Flávio Pierucci, da USP, em entrevista concedida à revista IHU online, por ocasião do centenário da obra “Ética protestante e o Espírito do Capitalismo”. Pergunta a revista IHU online: “Pode-se dizer que, de maneira geral as manifestações evangélicas correspondem modernamente ao “espírito” mencionado por Weber?”. “Não”, responde de forma enfática o professor da USP, e continua:

Weber quando fala “ética protestante”, na verdade desconstrói a idéia de que o protestantismo é um bloco único, igual [...]. Nós estamos vendo que algumas vertentes desse nosso protestantismo [...] Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Renascer [...] elas têm um apego aos objetos sagrados, a determinados gestos sagrados como se eles tivessem força salvífica. Na teoria Calvinista, isto vai ser jogado no lixo como sendo idolatria, como sendo divinização das criaturas” (IHU ONLINE, 2004, 101.p.11).

b) De “Capitalismo” não devemos entender como sendo uma busca frenética pelo lucro, sem nenhum freio ético, imagem forjada de imediato, quando pensamos no assunto, talvez pela leitura marxista impregnada e já irreversível. Jorge Amado, escritor brasileiro, traduz o entendimento do senso comum, em relação ao capitalismo: “O capitalismo conserva-se o mesmo sistema frágil e injusto, produtor de guerras, de miséria, baseado no lucro, na ânsia do dinheiro[2]”. Weber, entretanto, faz questão de desfazer esse grande equívoco:

O impulso pelo ganho, a perseguição do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem, em si mesmo, nada que ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiram entre garçons, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas [...]. Pode-se dizer que tem sido comum a toda sorte de condições humanas em todos os tempos e em todos os países da terra [...]. A ganância ilimitada de ganho não se identifica nem de longe com o capitalismo, e menos ainda com o seu “espírito”(WEBER, 2002. p.26).


Ao que concorda Biéler: “Não se trata mais, de modo algum, da paixão pelo ganho que caracterizava outrora alguns comerciantes à vida de riquezas” (BIÉLER, 1999. p.624). E ainda:
Calvino, sabe-se, é o primeiro dos teólogos cristãos a exonerar o empréstimo a juros do opróbrio moral e teológico que a igreja havia feito sobre ele, até então; não é justo, entretanto, atribuir-lhe a justificação integral do capitalismo liberal (BIÉLER, 1999. p.205).


Isso é ainda reconhecido, na entrevista já mencionada acima. Perguntado se seria correto dizer que estamos lidando com dois tipos de capitalismos: um que busca uma distribuição justa de renda e igualdade de oportunidades para todos e outro capitalismo financeiro predatório, o professor responde com um enfático “sim” e continua: “o capitalismo financeiro é um capitalismo que, na realidade, não cria nenhum capitalismo auto-sustentável” (IHU ONLINE, 2004, 101. p.10). Correremos o mesmo risco, portanto, de não sintonia, se não atentarmos para o fato de que não existe apenas um modelo de capitalismo. Essa verdade tem sido ocultada, em nossa visão, basicamente por dois motivos: primeiramente, como herança dos nossos colonizadores por questões religiosas. O modelo de capitalismo analisado por Weber é um modelo, como veremos, intrinsecamente ligado à cultura dos países onde há predominância protestante. Como o Brasil sempre foi um país “católico”, e ainda o é[3], mesmo que sua constituição pregue o laicato, nunca foi “boa política” apresentar tal modelo de capitalismo como algo positivo. Todo esforço então acabou sendo canalizado ou para uma “caricaturização” desse capitalismo ou mesmo para abertura ao outro modelo – o chamado “capitalismo predatório”. O outro motivo foi a vocação à simpatia pelas idéias marxistas da América Latina. Neto traz uma abordagem interessantíssima sobre essa questão:

Joãozinho, meu filho, está na faculdade. Um dia desses, um professor falou-lhe maravilhas sobre o comunismo e ele veio me questionar: - Pai, se o comunismo é tão bom, por que é que o capitalismo venceu em todo o mundo? Eu poderia indicar-lhe uma centena de livros, mas preferi me propor um desafio: como explicar a um jovem, de maneira sucinta e acessível, as inúmeras contradições entre os dois sistemas? Eis em resumo, o que lhe falei: - João, o comunismo seria um sistema perfeito se ele não exigisse, como pré-condição, um ser humano perfeito para nele viver [...]. O capitalismo não é uma ideologia pré-elaborada. Ele nasceu espontaneamente, como conseqüência natural do progresso econômico da humanidade. Não tem criadores, tem no máximo intérpretes. O primeiro deles foi Adam Smith, um filósofo moral que, na década de 1770, afirmou que todos nós, humanos, temos o desejo inato de melhorar as nossas próprias condições [...]. Sua mais famosa constatação foi a de que “não é pela benevolência do açougueiro ou do padeiro que contamos com o nosso jantar, mas sim pelo próprio interesse deles em ganhar dinheiro”. Sua conclusão foi a de que “se cada um cuidar de promover seus próprios interesses, o resultado será a prosperidade da sociedade como um todo” [...]. O estado não deve interferir no mercado ou tentar fixar “preços justos”, mas sim deixar que a economia, regida pela “mão invisível”, que nada mais é que a interação permanente entre todos os indivíduos, caminhe por si só. – Mas pai, observa Joãozinho – na prática as coisas não se dão bem assim [...]. Como é que os pobres vão competir? – No capitalismo maduro, é aí que entra o estado. Quais são as funções do Estado? Promover a segurança e justiça, proibir os monopólios, garantir a livre concorrência [...]. Além disso ele tem um papel importantíssimo, que é o de promover iguais oportunidades para todos. – Mas não é assim no Brasil, não é verdade? – Essa é a regra nos países capitalistas avançados. No Brasil, o verdadeiro capitalismo nunca existiu (MELÃO, 2005. p.29,30,31).



PONTO DE PARTIDA PARA A INVESTIGAÇÃO DE WEBER

Outros pesquisadores já haviam estudado a importância das idéias e das convicções éticas com relação ao surgimento do capitalismo e chegaram à conclusão que o moderno capitalismo não poderia ter surgido sem uma mudança espiritual básica. Contudo, somente o trabalho de Max Weber foi capaz de formular uma teoria geral verdadeira, capaz de, inclusive, confrontar-se com Karl Max, que acreditava que os “fatos econômicos não podiam ter senão causas econômicas”. Weber entendia que para conhecer a causa do surgimento do capitalismo era necessário fazer um estudo comparativo entre as sociedades.


Um simples olhar às estatísticas ocupacionais de qualquer país de composição mista mostrará, com notável freqüência, uma situação que muitas vezes provocou discussões na imprensa e literatura católicas.O fato de que os homens de negócios e donos do capital, assim como os trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e comercialmente das modernas empresas é predominantemente protestante (WEBER, 2002. p.37).

Max Weber usa como ponto de partida para sua investigação as seguintes premissas, utilizando como pressuposto a Europa moderna:

a) Homens de negócios e grandes capitalistas;
b) Operários qualificados de alto nível e pessoal especializado (tecnologicamente e comercialmente);
c) Premissas 1 e 2 têm em comum o fato de conter majoritariamente protestantes.



SISTEMATIZAÇÃO DOUTRINÁRIA CALVINISTA


Weber chega à conclusão que há algo no estilo de vida dos protestantes, em sua ética, que favorece o que ele chama de “espírito do capitalismo”. Todo seu esforço investigativo é canalizado para identificar possíveis causas que acabou produzindo esse tipo de ética e estilo de vida que cria uma atmosfera propícia para o capitalismo. De forma bastante clara, Weber atribui ao Calvinismo[4] a produção dessa ética particular, principalmente aos efeitos psicológicos causados pela doutrina da eleição ou da predestinação. Para melhor compreensão de como ocorre esse processo na mente protestante/calvinista e seu reflexo na vida cotidiana, expomos abaixo, de forma bastante reduzida, o arcabouço doutrinário dessa doutrina basilar das Escrituras, reveladas com muito fulgor nos escritos paulinos e, posteriormente, sistematizadas principalmente e de forma mais completa e contundente por Calvino. Basicamente a doutrina Calvinista pode ser dividida em cinco pontos: a) Depravação Total do Homem; b) Eleição incondicional; c) Expiação Limitada; d) Graça Irresistível; e) Perseverança dos Santos. Evidentemente, por delimitação do nossa tema, não iremos abordar ponto a ponto, mas apenas as idéias gerais.
A antropologia bíblica enxergada por Calvino e tantos outros expoentes, como Agostinho de Hipona, que tira do homem o tão requerido e postulado “livre arbítrio”, é peça fundamental no entendimento da doutrina da predestinação ou eleição. Para demonstrá-la, nos serviremos de algumas confissões de fé, reconhecidamente calvinistas:

Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade natural, que ela nem é forçada para o bem nem para o mal, nem a isso é determinada por qualquer necessidade absoluta de sua natureza: Tiago 1:14; Deut. 30:19; João 5:40; Mat. 17:12; At.7:51; Tiago 4:7. (WESTMINSTER, 1999. IX.I).

Sua vontade e seu coração eram retos, todos os seus afetos, eram puros; portanto era o homem completamente santo (DORT, 1999. III.II).

O homem, ao cair no estado de pecado, perdeu inteiramente todo o poder de vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação; de sorte que um homem natural, inteiramente avesso a esse bem e morto no pecado é incapaz de, pelo seu próprio poder, converter-se ou mesmo preparar-se para isso: Rom. 5:6 e 8:7-8; João 15:5; Rom. 3:9-10, 12, 23; Ef.2:1, 5; Col. 2:13; João 6:44, 65; ICor. 2:14; Tito 3:3-5. (WESTMINSTER, 1999. IX).

Depois da queda, o homem corrompido gerou filhos corrompidos. Então a corrupção, de acordo com o justo julgamento de Deus, passou de Adão até todos os seus descendentes [...]. Não passou por imitação, como os antigos pelagianos afirmavam, mas por procriação da natureza corrompida (DORTE, 1999, III.II).

Para um homem nesse estado de morte espiritual e de “nulidade” total e absoluta, um verdadeiro agente passivo da condição espiritual, pós-pecado, quando há a perda do livre-arbítrio, pois que vontade (espiritual) pode ter um morto? Para esse homem só existe uma possibilidade de salvação. Assim como o remédio certo só pode ser receitado após o diagnóstico adequado, a doutrina da eleição (que é uma ação externa e vivificadora de Deus no “inerte” cadáver espiritual que é o homem) é, segundo a sistematização calvinista, o “único” remédio a ser receitado, remédio este que o homem (morto espiritualmente pelo pecado, como ratifica a afirmação paulina “o salário do pecado é a morte” (Rm 6:23), não pode sequer adquiri-lo, por razões obvias, espera então, passivamente, o remédio da “graça” ser derramado, por Deus, em sua vida. Utilizaremos-nos mais uma vez das confissões de fé calvinistas para demonstrar a doutrina da eleição ou predestinação:

Todos aqueles a quem Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido chamar eficazmente pela sua Palavra e pelo seu Espírito, no tempo por ele determinado e aceito, tirando-os daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza para a graça e salvação, em Jesus Cristo. Isto Ele o faz, iluminando os seus entendimentos, espiritual e salvificamente, a fim de compreenderem as coisas de Deus, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando-lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as, pela sua onipotência, para aquilo que é bom, e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela graça: II TS 2:13-14, II TM 1:9,10, JO 6:44-45, JO 6:37. (WESTMINSTER, 1999, X.I).

Esta vocação eficaz é só da livre e especial graça de Deus e não provem de qualquer coisa prevista no homem; na vocação o homem é inteiramente passivo, até que, vivificado e renovado pelo Espírito Santo, fica habilitado a corresponder a ela e a receber a graça nela oferecida e comunicada: II Tim. 1:9; Tito 3:4-5; Rom. 9:11; I Cor. 2:14; Rom. 8:7-9; Ef. 2:5; João 6:37; Eze. 36:27 (WESTMINSTER, 1999, X.II).

Os não eleitos, posto que sejam chamados pelo ministério da palavra e tenham algumas das operações comuns do Espírito, contudo não se chegam nunca a Cristo e, portanto não podem ser salvos; muito menos poderão ser salvos por qualquer outro meio os que não professam a religião cristã, por mais diligentes que sejam em conformar as suas vidas com a luz da natureza e com a lei da religião que professam; o asseverar e manter que podem é muito pernicioso e detestável: Mat. l3:14-15; At. 28:24; Mat. 22:14; Mat. 13:20-21, e 7:22; Heb. 6:4-5; João 6:64-66, e 8:24; At. 4:12; João 14:6 e 17:3; Ef. 2:12-13; II João 10: l 1; Gal. 1:8; I Cor. 16:22 (WESTMINSTER, 1999, X.IV).



O IMENSO SENTIMENTO DE GRATIDÃO QUE CRIA UM AMBIENTE PROPÍCIO AO APARECEIMENTO DO “ESPÍRITO DO CAPITALISMO”.


A crença nessa sistematização doutrinária calvinista leva o “eleito” a um imenso sentimento de gratidão a Deus, uma vez que, mesmo sem merecer, recebe esta graça extraordinária.
Dessa forma, coube aos puritanos, que se consideravam eleitos, viver a santificação da vida cotidiana. Pois o caráter sectário – a consciência de ser minoria e a motivação de ser eleito de Deus – fazia de cada membro dessas comunidades não mero adepto do rebanho mas, mas um vocacionado que se dedicava simultaneamente ao aprimoramento ético, intelectual e profissional (WEBER, 2002. p.21).


Como conseqüência e em gratidão, passa a viver e a dedicar todos os seus momentos, inclusive atividades seculares, para a “glória de Deus”. Weber considera a doutrina da eleição ou predestinação como ponto central na produção dessa ética Calvinista: “Consideramos apenas o Calvinismo e adotamos a doutrina da predestinação como arcabouço dogmático da moralidade puritana, no sentido de racionalização metódica da conduta ética” (WEBER, 2002, p.91). Packer, importante teólogo, ao tratar dessa mesma questão, ao analisar a vida dos Puritanos, que eram essencialmente Calvinistas, também chama a atenção para a vida diferenciada que a doutrina da eleição acaba desenvolvendo nos que crêem assim. Diz ele “A atenção que os puritanos davam à boa consciência emprestava grande força ética ao seu ensino [...] os puritanos foram os maiores pregadores da retidão pessoal” (PACKER, 1999. p.11).
O conhecimento e aceitação dessa verdade escriturística compreende, necessariamente, uma mudança nas próprias práticas, isto é, o conhecimento não pode ser apenas intelectual, antes, precisa descer ao coração e traduzir-se em ações. “O propósito da verdade de Deus colocada nas mentes do seu povo é que, ao compreendê-las, eles venham a conhecer o seu efeito na sua experiência pessoal (MARTINS, 2001. p.9).
O importante Catecismo calvinista, também produzido em Westminster, dá o tom dos objetivos dessa nova vida outorgada pela graça, já na pergunta inicial: “Qual é o Fim supremo e principal do homem? O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus” (CATECISMO MAIOR, 2007. p.31). Martins, sobre isso faz uma pertinente colocação: “quando Deus torna uma pessoa Calvinista [...] esse encontro traz um conhecimento íntimo da voz de Deus, uma total resignação à vontade e aos caminhos de Deus” (MARTINS, 2001. p.19).
Esta nova atitude traz profundas implicações éticas e morais, criando no “eleito”, naturalmente, uma espécie de doutrina da “prova” de sua eleição, isto é, o eleito deveria viver de tal forma que sua pregação fosse completamente ajustada e alinhada à sua práxis, bem como deveria fazer girar todos os seus outros objetivos em órbita daquele que é a razão da sua própria vida nova: a glória de Deus; eliminando também, com isso, por completo, qualquer possibilidade alienante de “salvação por obras ou por sacramentos mágicos”.
Além disso, a antiga dicotomia romana entre Sagrado e Profano cai por terra. Para Calvino e seus seguidores não apenas as atividades relacionadas à religião e a fé deveriam glorificar a Deus, antes, pelo contrário, absolutamente tudo, inclusive atividades consideradas “seculares”, como a comercial, por exemplo, deveriam ser direcionadas aos céus; não havendo nem mesmo um só instante que ficasse de fora, todos eles deveriam trazer em si a preocupação de glorificar a Deus, sob pena de não serem realizados. Weber parece ter percebido isso com muita clareza quando afirma que “o Deus de Calvino exigia de seus crentes não boas ações isoladas, mas uma vida de boas ações combinadas em um sistema unificado (WEBER, 2002. p.91).
Kuyper, um renomado calvinista, numa das mais importantes obras publicados sobre a influência do Calvinismo no mundo, intitulada “Calvinismo”, também compartilha com essa idéia de “sistema unificado de vida”, denotando a abrangência do “supremo objetivo do homem” – a glória de Deus - na visão calvinista, nas mais variadas áreas de atividades. Afirma ele:
O Calvinismo realmente nos prevê uma unidade de sistema de vida [...] devemos perguntar quais são as condições requeridas para sistemas gerais de vida, tais como o Paganismo, o Islamismo, o Romanismo e o Modernismo, e então mostrar que o Calvinismo realmente preenche essas condições [...]. Portanto, como fenômeno central no desenvolvimento da humanidade, o Calvinismo não está apenas habilitado a uma posição de honra ao lado das formas paganista, islâmica e romanista, visto que como estes ele representa um princípio peculiar dominando o todo da vida, mas também satisfaz cada condição requerida para o avanço do desenvolvimento humano a um estágio superior. E isto permaneceria ainda uma simples possibilidade sem qualquer realidade correspondente, se a história não testificasse que o Calvinismo tem realmente induzido o rio da vida humana a fluir em outro canal e tem enobrecido a vida social das nações (KUYPER, 2002. p.28,47).


Lembo, escrevendo sobre isto ainda observa:

O Calvinismo não é somente um sistema teológico completo [....], mas também é uma completa biocosmovisão que determina para o calvinista o ponto de partida para toda a sua reflexão e sua vida prática; que determina enfim diretrizes pressuposicionais de qualquer área da vida e do pensamento (LEMBO, 2000. p.120).


Como já vimos o Calvinismo não é apenas uma questão de fé nem tão pouco um complicado conglomerado metafísico que não reflete nas atitudes do cotidiano das pessoas, antes, pelo contrário, o Calvinismo invade todas as áreas do ser, inclusive à que o catolicismo considera “secular”, como observa Weber “O efeito da Reforma foi o de aumentar em si mesmo, se comparado à atitude católica, e aumentar de forma poderosamente a ênfase moral e a sanção religiosa em relação ao trabalho secular organizado no âmbito da vocação” (WEBER, 2002. p.128). É uma verdadeira avalanche mista de conhecimento profundo e prática anexada: “O teólogo norte-americano BB.Warfied descreve o Calvinismo como sendo a visão da majestade de Deus que permeia a vida e a experiência como um todo” (MARTINS, 2001, p.9). Seguindo a orientação Apostólica de Paulo, os Calvinistas procuram “fazer todas as coisas como se estivessem fazendo para Deus” (RM 14:23, FP 2:3-15). Weber confirma isso ao afirmar que “no curso de seu desenvolvimento, o calvinismo acrescentou algo de positivo a isso tudo, ou seja, a idéia de comprovar a fé do indivíduo pelas atitudes seculares” (WEBER, 2002. p.120).

Este dogma da predestinação engendrou o individualismo. Apesar de sua patética desumanidade, este dogma teve principal efeito engendrar, entre aqueles que aceitavam as suas grandiosas conseqüências, indefectível sentimento de comunhão individual com Deus, comunhão que nada no mundo poderia alterar [...]. É esta inabalável e exclusiva confiança na só decisão de Deus sobre a sorte de cada um que e causa do tão acusado individualismo que caracteriza todas as populações influenciadas pelo Puritanismo [...] eis aí um dos caracteres que o calvinismo comunicará a toda organização social que criará e que, ainda hoje, permanece vivo, na condição de um sentimento profano, nas populações protestantes secularizadas [...].Este individualismo imprime igualmente sua marca na concepção peculiar do Calvinismo do amor ao próximo. Não é o próximo considerado em si mesmo, que é gerador deste amor; é-o a ordem e o mandamento de Deus que quer que todo o universo se conforme a Seu propósito, para Sua só glória. É assim que o exercício de um trabalho e de uma profissão é uma atividade divina ordenada para o serviço do próximo [...] o autêntico serviço do próximo é a busca da glória de Deus e não da glória da criatura. Tudo quanto o homem empreende, para seu Deus ou para seu próximo tem, pois, certo caráter utilitário: deve ser útil à glória de Deus. E é este fim último comum a todos os atos e a todas as atividades da vida que dá à existência inteira, segundo a moral calvinista, um caráter ascético (BIÉLER, 1999. p.630,631).



OS EQUÍVOCOS DE INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE WEBER



Após essa breve exposição, abordaremos agora três equívocos de interpretação da obra de Weber:

a) Para abordar o primeiro equívoco, nos utilizaremos de uma citação da revista IHU online: “Os protestante têm de trabalhar constantemente e de forma consistente para assegurar um lugar ao céu”(IHU ONLINE, 2004, 101. p.24). O equívoco se dá porque a doutrina calvinista, como exposta acima, não deixa margem para o mérito do homem, já que tudo depende de Deus e de sua graça, que por definição é favor não merecido. Esquecer que a antropologia calvinista entende o homem como um agente passivo na “conquista de um lugar ao céu” e que está “morto espiritualmente”, portanto, incapacitado de trabalhar “muito ou pouco” para alcançar qualquer bem espiritual, é uma grave falha de alguém que, talvez, se aventura a falar de algo sobre o qual nunca leu.
b) Para abordar o segundo equívoco, utilizaremos o comentário da contracapa do livro “Ética protestante e o Espírito do capitalismo”, da coleção Obra Prima de cada Autor, da editora Martin Claret: “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, que vincula o nascimento do capitalismo à doutrina calvinista da predestinação e à conseqüente interpretação do êxito material como garantia da graça divina”. Nosso interesse e primeira leitura da obra de Weber veio depois de um comentário de um professor, doutor, que tinha o mesmo conteúdo da contracapa citada acima. Afirmava ele: “o capitalismo (tom negativo e de repulsa) que literalmente faz com que as pessoas morram de fome, sem se importar com elas, mas apenas com o lucro, é culpa do calvinismo, de Calvino. Este tipo de afirmação leva os leitores desavisados, que ainda não tiveram contato com os textos da doutrina calvinista, a um estranho entendimento de que a prova da predestinação de uma pessoa é a sua riqueza. Em contrapartida, de imediato, se deduz que o pobre não é predestinado ou agraciado ou ainda, em última análise, salvo por Deus. Isto posto, sem considerar que a doutrina “calvinista” da predestinação está tão somente ligada à salvação da alma, como remédio para um homem morto espiritualmente. Para desconstruir este comentário da contracapa da Martin Claret nos valeremos de duas citações do pensamento de Calvino, sobre a divisão de renda e sobre o pobre no reino de Deus, conforme Biéler:

Se, então, de pleno grado, as criaturas de Deus seguissem à risca as leis de seu criador haveria espontânea e natural repartição destes bens entre todos os homens. Exata correspondência haveria entre as riquezas deste mundo e as graças divinas que elas representam; todos lhes seriam igualmente beneficiários (BIÉLER, 1990. p.426).

Calvino mostra, com clareza, que o fim supremo dos bens que Deus concede a alguém é a ajuda do pobre e Sua (de Deus) própria glória. E para Calvino, se é verdade que na dialética estabelecida entre o homem e a providência - o rico sendo rico por Deus e o pobre sendo pobre por Deus -, não é lícito fazer desse ato de fé uma teoria estática da sociedade, justificando a pobreza momentânea de uns e a riqueza momentânea de outros. Na doutrina reformada e bíblica é exatamente o contrário que é verdadeiro. Biéler deixa isso muito claro ao citar as palavras de Calvino:


Os pobres aí estão como testemunhas do ministério de Jesus Cristo, destinados a serem reconhecidos como tais pelas pessoas de fé [...] e os ricos são ricos senão para exercer o ministério do rico, segundo Deus, que consiste em reconhecer que a parte suplementar que recebeu é precisamente destinada aos pobres (BIÉLER, 1990. p.643).

E ainda:

O homem é apenas o fiduciário dos bens que lhes foram entregues pela graça de Deus. Ele deve, como o servo da parábola, prestar contas até o último centavo do que lhe foi confiado, e seria no mínimo perigoso gastar qualquer deles apenas para seu prazer, em detrimento da glória de Deus. (BIÉLER, 1990. p.127).


Como estadista genebrino, Calvino deveria preocupar-se não só com questões de fé, mas também com o desenvolvimento holístico do Estado. Mesmo com tamanha responsabilidade, nota-se uma grande preocupação na proteção dos menos favorecidos, argumento que anula, por completo, qualquer pretensão de atribuir ao Calvinismo o beneficiamento das classes ricas, quer em assuntos espirituais quer em assuntos do Estado:

Destarte, ciosa da prosperidade da cidade, é a reforma calvinista favorável à atitude financeira, mas, preocupada com a sorte das camadas modestas da população, levanta-se contra toda prática ou atividade que ameaça prejudicar a parcela mais pobre do povo (BIÉLER, 1990. p.205).



c) O terceiro e pior equívoco é atribuir ao calvinismo a “doutrina da prosperidade”. Esta doutrina é uma distorção da doutrina bíblia, data dos anos 80 e 90, tendo como um dos seus principais articuladores Kenneth Hagin, que afirma que “os filhos do Rei” são “príncipes” e que por isso devem ser prósperos. Calvino jamais concordaria com tamanho absurdo. Este movimento faz nascer, como conseqüência de seu pensamento, uma espécie de “Super-Crente” que praticamente tem o dever de ser próspero, além de possuir uma espécie de “imunidade espiritual” contra as doenças, ou seja, uma espécie de “semideus”, como bem relata o teólogo calvinista, professor de teologia sistemática do Seminário Presbiteriano do Norte, Jorge Noda, citando algumas frases de “teólogos” da prosperidade, como Casey Treat e Kenneth Hagin:

Você não tem um deus no seu interior, você é um Deus...Uma réplica perfeita de Deus! Diga isso em alto e bom som, “eu sou uma réplica perfeita de Deus”! (A congregação repete um tanto insegura e sem jeito)...vamos digam isto! (Ele conduz a congregação em uníssono). Digam de novo! “Eu sou uma réplica de Deus!” - A congregação começa a se animar e o entusiasmo e o barulho aumentam cada vez que eles repetem a frase (NODA, 1997. p.23).


Nessa obra, que consideramos importante citar por ter sido escrito por um teólogo calvinista, o que acaba sendo um referencial para desmistificar o equívoco de julgar ter o calvinismo algo haver com a “teologia da prosperidade”, o autor relata fatos absurdos provocados por essa “nova” maneira de pensar. Fatos que vão desde a morte de um filho de um casal que “decretava” sua cura e, posteriormente, até mesmo sua “ressurreição” até a compra de um carro com cheques sem fundos, por acreditar que o dinheiro seria depositado na conta, de forma miraculosa. Não nos prolongaremos mais nestes detalhes, por razões obvias. É o bastante ficar entendido o grande abismo que há entre Calvinismo e Teologia da Prosperidade, sob pena de estarmos mais uma vez fora de sintonia com Weber.


CONCLUSÃO

Algo digno de registro nestas palavras finais é o fato de ser a abra de Weber sempre lida com lentes de observadores nem sempre conhecedores de pontos basilares da doutrina calvinista. Isto em nossa opinião é crucial para alcançarmos sua idéia. Muitos, porém fazem essa leitura pelas lentes “calvinistas” puritanas, contudo, sem filtrar informação, julgam estar lendo pelas lentes do próprio Calvino. Apesar de serem os puritanos reconhecidamente calvinistas, cometeram alguns exageros que poderiam comprometer as idéias calvinistas. Em síntese, o asceticismo moral dos protestantes e sua “nova” idéia de vocação, leva-os a uma conduta ética otimizada e desprendida de quaisquer recursos dogmáticos não explícitos nas sagradas escrituras, como a exigibilidade da pobreza, por exemplo, formaram o que Weber chama de “espírito do capitalismo”.


BIBLIOGRAFIA

BIÉLER. André. O Pensamento Econômico e Social de Calvino. São Paulo: CEP, 1990. p

DORT. Os Cânones de Dort. Rio de Janeiro: Cultura Cristã, 1999. Capítulo III, artigo

LEMBO. Cláudio. O Pensamento de João Calvino. São Paulo: Makenzie, 2000. 117.p

MARTINS. A.N. As inplicações Práticas do Calvinismo. São Paulo: Ed.Os Puritanos, 2001. p

MELLÃO NETO, João. O que enriquece e o que empobrece uma nação. 2.ed. São Paulo: A Girafa, 2005. p

NODA. Issao. Somos Deuses? São Paulo: Ed.Facioli, 1977. 45p

PACKER.J.I. Entre os Gigantes de Deus. São Paulo: Ed.Os Puritanos. 1991. p

Revista IHU ON LINE, edição 101 de 17 de maio de 2004.

WEBER.Max. Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2002.224 p.

WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. Rio de Janeiro: Cultura Cristã, 1999. p.

[1] Maximillion Weber nasceu em Erfurt, em 21 de abril de 1864. Pelo pai, que foi deputado do Partido Nacional Liberal, Weber teve oportunidade de entrar bem cedo em contato com ilustres historiadores, filósofos e juristas da época. Estudou história, economia e direito nas universidades de Heidelberg e Berlim. Laureou-se em Göttingen, em 1889, com uma tese de história econômica sobre a História das sociedades comerciais na Idade Média. Em 1892, conseguiu a livre docência com A história agrária romana em seu significado para o direito público e privado. Em 1894, tornou-se professor de economia política na Universidade de Freiburg. Em 1896, passou a ensinar em Heidelberg. Era o mais velho dos 7 filhos de Max Weber e sua mulher Helene. Ele foi, juntamente com Karl Marx, Vilfredo Pareto e Emile Durkheim um dos modernos fundadores da sociologia. É conhecido sobretudo pelo seu trabalho sobre a sociologia da religião. De 1897 a 1903, sua atividade científica e didática ficou bloqueada por causa de grave doença nervosa. Nesse meio tempo, em 1902, juntamente com Werner Sombart, tornara-se co-diretor da prestigiosa revista Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik. Em 1904, realizou viagens aos Estados Unidos. Durante a Primeira Guerra Mundial, defendeu as "razões ideais" da "guerra alemã" e prestou serviço como diretor de hospital militar. Seguiu, com angustiada preocupação, a ruína moral e cultural da Alemanha, jogada pelo Imperador e por seus ministros no beco sem saída da pura política de poder. Depois da guerra, participou da redação da Constituição da República de Weimar. Morreu em 14 de junho de 1920, em Munique, para onde fora chamado, a fim de ensinar economia política. Conforme www.antroposmoderno.com/biografias/Weber.html,http://pt.wikipedia.org/wiki/Max_Weber, em 17/10/07.

[2] Entrevista concedida ao jornal O Globo, logo após a queda do muro de Berlim, em 23/06/1991.
[3] Apesar de ser, legalmente, um país que não possui uma religião oficial, por força de lei, e do crescimento geométrico das igrejas “protestantes”, isso se evidencia no claro beneficiamento, nas mais variadas esferas do poder público, ao catolicismo romano. Basta tão somente citarmos alguns exemplos, a título de ilustração: o calendário, que é recheado de feriados oficiais, eminentemente católicos; muitas igrejas católicas são pintadas ou reformadas com verba pública, advindas, inclusive, de impostos pagos por “protestantes”; até mesmo um dos mais importantes projetos nacionais – a transposição das águas do rio São Francisco – teve que ser adiado por conta do capricho de um bispo católico romano, não-brasileiro, mesmo depois de anos de pesquisas e de finalmente ter sido aprovado. Para saber mais sobre esse assunto acessar a página a seguir para ler artigo do mesmo autor: http://www.ipb.org.br/versao_pdf/bp_junho2006.pdf.
[4] João Calvino exerceu uma influência internacional no desenvolvimento da doutrina da Reforma Protestante, à qual se dedicou com a idade de 30 anos, quando começou a escrever os "Institutos da religião Cristã" em 1534 (publicado em 1536). Esta obra, que foi revista várias vezes ao longo da sua vida, em conjunto com a sua obra pastoral e uma colecção massiva de comentários sobre a Bíblia, são a fonte da influência permanente da vida de João Calvino no protestantismo. Para Bernardye Cotitretw, biógrafo de Calvino, "o calvinismo é o legado de Calvino e torna-se uma forma de disciplina, de ascese, que não raramente é levada ao extremo da teimosia". O Calvinista é pois no extremo um profundo conhecedor da Bíblia, que pondera todas as suas ações pela sua relação individual com a moral cristã. O Calvinismo é também o resultado de uma evolução independente das idéias protestantes no espaço europeu de língua francesa, surgindo sob a influência do exemplo que na Alemanha a figura de Martinho Lutero tinha exercido. A expressão "Calvinismo" foi aparentemente usada pela primeira vez em 1552, numa carta do pastor luterano Joachim Westphal, de Hamburgo. O Calvinismo marca a segunda fase da Reforma Protestante, quando as igrejas protestantes começaram a se formar, na seqüência da excomunhão de Martinho Lutero da Igreja Católica romana. Neste sentido, o Calvinismo foi originalmente um movimento luterano. O próprio Calvino assinou a confissão luterana de Augsburg de 1540. Por outro lado, a influência de Calvino começou a fazer sentir-se na reforma Suíça, que não foi Luterana, tendo seguido a orientação conferida por Ulrico Zuínglio. Tornou-se evidente que a doutrina das igrejas reformadas tomava uma direcção independente da de Lutero, graças à influência de numerosos escritores e reformadores, entre os quais João Calvino era o mais eminente, tendo por isso esta doutrina tomado o nome de Calvinismo, conforme: http://pt.wikipedia.org/wiki/Calvinismo, acessado em 19/10/2007.

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