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quinta-feira, 5 de abril de 2012

A TRANSIÇÃO DO TEMPO PARA A ETERNIDADE COMO UM PRESSUPOSTO MÍSTICO EM AGOSTINHO DE HIPONA - Controvérsia com os Maniqueus - Parte 2

1- A controvérsia com os Maniqueus

O cerne dessa principal polêmica, que envolve, primordialmente, a questão da eternidade, perpassa pela provocante pergunta feita pelos maniqueus[1]: O que fazia Deus antes de criar a terra?

Agostinho apresenta a argumentação maniquéia da seguinte forma:

Certamente estão ainda mergulhados na cegueira do velho homem aqueles que dizem: que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? E acrescentam: se estava ocioso e nada realizava, porque não ficou sempre assim, continuando a abster-se do trabalho? Se existia em Deus um movimento novo, uma vontade nova de criar uma criatura que ele ainda não tinha feito antes, como se pode falar de verdadeira eternidade, onde nasce uma vontade que antes não existia? Mas a vontade de Deus não é uma criatura; é anterior a toda criatura, pois nada seria criado se antes não existisse a vontade do Criador. Essa vontade pertence à própria substância de Deus. Mas se algo surgiu na substância de Deus que antes não existia, não é justo denominá-la substância eterna. Pelo contrário, se era eterna a vontade de Deus que existisse a criatura, por que não é eterna também a criatura?[2].

Fica evidente a intenção dos maniqueus: deixar seus oponentes em situação embaraçosa. Se reconhecem a mudança na vontade de Deus, caem no precipício de negar-lhe a eternidade, pois é próprio do eterno permanecer. Se, por outro lado, admitem a existência co-eterna das coisas, admitem integralmente o pensamento dos maniqueus. 

Para responder aos questionamentos sugestionadores dos maniqueus, Agostinho, cautelosamente, desvia a indagação para outra direção, procurando estabelecer parâmetros para sua resposta e, ao mesmo tempo, esvaziar a pergunta dos maniqueus, uma vez que, para Deus, não há passado nem futuro, mas apenas um “eterno presente”; isto é, Deus tudo vê de forma compacta e ao mesmo tempo, no “esplendor de sua sempre imutável eternidade”. Agostinho reconhece, entretanto, o esforço deles para conhecer as coisas eternas, mas adverte: nunca conseguirão chegar a esta compreensão; pelo menos enquanto não se desvencilharem das realidades passadas e futuras.

Para Agostinho, não cabe sequer a pergunta sobre o que Deus fazia antes da criação, ou ainda, porque não quis criar antes o que criou depois. Essas questões pressupõem mudança, e esta é antítese de eternidade.

Eles – os maniqueus – estavam querendo achar um Deus que em sua própria natureza é livre, por sua eternidade e soberania, preso aos mesmos caprichos de suas consciências. Sua maneira de entender esta questão estava completamente equivocada, jamais compreenderiam que, em certo sentido, “o princípio”[3] não o é em relação a Deus e, sim, em relação às criaturas. Todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele. Em Deus não pode haver, e não há movimentos, pois isso é próprio da criatura finita e não do Criador infinito, como afirma Agostinho:

O céu e a terra existem e, através de suas mudanças e variações, proclamam que foram criadas [...], e todas as coisas proclamam que não se fizeram por si mesmas: Existimos porque fomos criados; mas não existimos antes de existir, portanto não podíamos ter criado a nós mesmos[4].

Parafraseando as palavras de Agostinho, como poderia uma obra de arte existir antes da existência do seu criador? Se a pintura é contemplada, e enche cada vez mais partes do corpo, até ficar todo ele tomado de um sentimento estético indescritível, ela – a pintura – estará sempre proclamando que foi criada. Até mesmo seu valor é avaliado não pela sua beleza em si, mas pela importância do seu criador. Maior honra terá a obra em proclamar que é criatura, e nunca se dirá co-existente com seu criador, do contrário não seria criatura; e muito menos dirá ser a causa de sua própria existência e, ainda que possível fosse, já estaria denunciada sua falácia, numa simples contemplação.

Assim também é o sentimento da criação toda em relação ao seu criador, apenas com uma diferença: a tela produzida é posterior ao seu criador, porém, este, por ser também criatura de um Criador, só pode criar a partir de uma outra matéria. Com a criação de Deus ocorre exatamente o contrário, como afirma Agostinho em suas Confissões e conversa com seu Criador:

Certamente não fizestes como o artista, que se serve de um corpo para formar outro corpo, imprimindo-lhe, segundo a inspiração do espírito, a imagem que seu olhar interior descobre [...] nem tinha à mão matéria alguma com que modelasses o céu e a terra [...], portanto, disseste uma palavra e as coisas foram feitas, com a tua palavra as criastes[5].

Nem mesmo em suas “eternas palavras” há sombra de mudanças ou variação, do contrário, onde estaria o conselho eterno? Em Deus, devido a sua eternidade, não se pode pensar na linguagem, assim como em nós ocorre: sucessivamente e depois do pensamento. Nele, pensamentos, palavras e frases, tudo acontece ao mesmo tempo. Os tipos de antropomorfismo[6] por vezes nos dão uma falsa impressão de sucessão em suas palavras e atos, porém como o entenderíamos nós, pelo menos em fagulhas, se não utilizássemos esse recurso de dizer as coisas concernentes a Deus através das coisas que conseguimos entender?

Pois o que foi dito não foi sucessivamente proferido – uma coisa concluída para que a seguinte pudesse ser dita, mas todas as coisas proferidas simultânea e eternamente. Se assim não fosse, já haveria tempo e mudança, e não verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade[7].

Por isso, ao responder à pergunta: O que fazia Deus antes de criar o mundo? Agostinho diz: “Aqueles que falam assim, ainda não te compreenderam [...]; ainda não compreenderam como se fazem as coisas criadas por ti e em ti”[8]. Em Deus, não há devir, apenas ser. “Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente”[9].

Com esse desvinculamento do “tempo perguntado” pelos maniqueus e a eternidade divina, Agostinho esvazia seus argumentos e, concluindo, cita que, antes da criação, “Deus preparava o inferno para aqueles que perguntam estes profundos mistérios”[10].

Com essa argumentação, confrontando o “tempo perguntado” pelos maniqueus com a eternidade de Deus, Agostinho põe por terra toda cadeia de pensamento do mito maniqueu, de uma criação co-eterna e, assim sendo, sem um criador.

Agostinho afirma, de forma racional, não apenas mística, a existência de um Deus eterno e uma criação não eterna, por sua própria natureza, e que todas as coisas foram criadas por Deus, quer direta ou indiretamente, e que não cabe a pergunta: “o que Deus fazia antes”, pois, antes da criação, não havia tempo, nem homem, para que se possa utilizar o termo “antes”, nem criação, apenas Deus em seu atributo incomunicável de imutabilidade, em sua eternidade:

Porventura, Senhor, tu és eterno, já não conheces o que te digo? Não vês no tempo o que se passa no tempo? Por que motivo te narro então tantos acontecimentos? Não é, certamente, para que os conheças por mim, mas para despertar meu amor por ti[11].

A partir desse conceito de eternidade e em contraponto com ele, Agostinho desenvolve, de forma mais elaborada, sua teoria sobre o tempo, abordando entre outros aspectos, sua subjetividade e, pela memória, as noções de passado, presente e futuro, como vimos nos capítulos anteriores.

A controvérsia de Agostinho com os maniqueus sobre o que Deus fazia antes de criar o mundo levou-o a afirmar a eternidade de Deus e, assim procedendo, inegavelmente, admite a possibilidade de um “tempo” para “além-do-tempo”. Ele o faz, entretanto, buscando apoio nas revelações, não diminuindo, por isso, de forma alguma, o valor lógico e racional de seus argumentos. Fica evidente, de igual modo, que Deus, sendo eterno – Ele sozinho – sem ninguém com quem tome conselho –, é também livre para criar; e o que criou, criou segundo sua exclusiva, soberana e eterna vontade:

Tuas obras te louvam para que te amemos, e nós te amamos para que tuas obras te louvem; elas que tiveram início e fim no tempo, nascimento e morte, progresso e regresso, beleza e imperfeição. Todas elas têm sucessivamente manhã e tarde, ora oculta ora manifesta. Do nada foram criadas por ti, não da tua substância; não de alguma matéria tua que existisse antes, mas de matéria concreta, criada por ti, ao mesmo tempo em que lhe deste uma forma sem nenhum intervalo de tempo. Uma é a matéria do céu e da terra. Essa matéria foi tirada da matéria informe, mas essas duas operações foram simultâneas, de forma que entre a forma e a matéria não houve intervalo de tempo[12].

A possibilidade da eternidade está intimamente ligada com a questão da imutabilidade. Para Agostinho, Deus é um eterno “ser”, que não muda e que não possui sequer sombra de variação; mais que isso, ele é único sob essas condições:

A imutabilidade de Deus é necessariamente concomitante com sua asseidade. É a perfeição pela qual não há mudança nele, não somente em seu Ser, mas também em suas perfeições, em seus propósitos e em suas promessas. Em virtude deste atributo, ele é exaltado acima de tudo quanto há, e é imune de todo acréscimo ou diminuição e de todo desenvolvimento ou decadência em seu Ser e em suas Perfeições [...] Até a razão nos ensina que não é possível nenhuma mudança em Deus, visto que qualquer mudança é para melhor ou para pior. Mas em Deus, a perfeição absoluta, melhoramento e deterioração são igualmente impossíveis[13].


[1] O Maniqueísmo foi uma espécie de seita fundada por Mani, no século III ac. Ele acreditava que a difícil situação humana era causada por dois princípios que co-existem naturalmente em todos os seres humanos: o primeiro espiritual e luminoso e o segundo material, físico e tenebroso. Basicamente a doutrina maniqueísta está fundamentada sob o pilar da existência desses dois princípios antagônicos: o bem e o mal. O bem sendo representado por Deus e o mal por Satanás. Sua doutrina misturava as doutrinas de Zoroastro com o Cristianismo. Agostinho participou desse grupo, durante nove anos, como “ouvinte” (espécie de catecúmeno, que não se obrigava a todos os votos exigidos pela seita, diferentemente dos “eleitos”, que se envolviam diretamente com seus rituais e cerimônias) atraído pela solução apresentada pelo maniqueísmo, relativamente à origem do mal, que isentava Deus de toda a responsabilidade pelos males existentes no universo. Isso fica claro quando afirma em suas Confissões, V.10,20: “Certa religiosidade que possuía me obrigava a crer que um Deus bom não podia ter criado uma natureza má [...] me parecia mais justo crer que não tivesses criado o mal nenhum, do que acreditar que a natureza do mal – como eu a imaginava – proviesse de ti”. Isso também é confirmado por COSTA, 2002, p. 58,59: “Os maniqueus, e Agostinho, durante o tempo em que pertenceu a essa seita, estavam preocupados em responder a uma simples pergunta: como é possível conciliar as maldades presentes no mundo – as injustiças, as desgraças, os ódios, as pestes, as calamidades, as misérias dos homens, os defeitos das sociedades e muitas outras com a bondade de Deus? Ou seja, Deus, O Bem, pode ser causa do mal? Ou devemos atribuir a um outro ser tão poderoso quanto Ele a causa do mal? Tentando responder a tal dilema, os maniqueus vão construir uma doutrina que isenta Deus de toda responsabilidade pelos males existentes no universo e o homem pelas maldades praticadas individualmente”. Posteriormente, já afastado do maniqueísmo, Agostinho reconhece em suas Confissões V.10,20 que: “desse princípio peçonhento derivam todos as outras idéias errôneas”, tornando-se forte opositor das doutrinas de Mani, como afirma em suas Confissões, XIII,30,45: “Escutei, Senhor meu Deus, e consegui recolher uma doce gota da tua verdade. Compreendi que a alguns desagradam as tuas obras. Sustentam que muitas delas criaste impelido pela necessidade; assim por exemplo, a estrutura dos céus e o sistema dos astros. Dizem que essas não foram criadas por ti, mas que já existiam, provindas de outra fonte. Tu as terias apenas reunido, compondo-as e coordenando-as, quando edificaste as muralhas do mundo, depois de teres vencido os teus inimigos, para que cativos, nessa construção, não pudessem de novo rebelar-se contra ti. Quanto aos outros seres, não os terias criado nem ao menos ordenado; assim por exemplo os corpos carnais, os animais menores e tudo o que se radica na terra; teria sido um espírito hostil e uma natureza não criada por ti e oposta à tua; quem teria gerado e formado tais seres nas regiões inferiores do universo. São loucos os que assim falam porque não vêem as tuas obras através do teu espírito; nem nelas te reconhecem”. E ainda em suas Confissões V,7.13: “Meu entusiasmo pelos escritos dos maniqueus acabou. Pois se o mais famoso entre eles , Fausto, bispo maniqueu, mostra-se tão inepto para resolver as questões que me angustiam, que poderia esperar dos outros mestres? Todavia, mantive relacionamento com ele, baseado no grande interesse comum pela literatura, que eu, como professor, ensinava aos jovens de Catargo. Lia com ele as obras que ele desejava conhecer, e as que eu julgava adequadas à sua inteligência. De resto, depois de conhecê-lo, meu propósito de prosseguir naquela seita caiu por terra, mas não a ponto de separar-me totalmente dela. Não havendo, por assim dizer, nada melhor, decidi permanecer no ponto a que chegara, enquanto não aparecesse algo mais calmo, que merecesse ser abraçado. Dessa forma, aquele Fausto, que foi para muitos uma armadilha mortal, sem que soubesse, começou a afrouxar o laço que me prendia”.
[2]Conf., XI.10.12.
[3] Referência à passagem escriturística utilizada como base, pelos maniqueus, para o questionamento da cosmovisão cristã. Sobre ela diz MAMMI, Lorenzo. Santo Agostinho, o tempo e a música. São Paulo: USP, 2002. p. 262: “No princípio Deus Criou o céu e a terra”. O que fazia antes desse princípio? Como é possível que um ser eterno e imutável comece a fazer alguma coisa? Essa pergunta, para Agostinho, não faz nenhum sentido: não há um antes desse princípio.
[4] Conf., XI.3,4.
[5] Conf., XI.3,5.
[6] Assim é definido o termo na ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro, São Paulo: Encyclopaedia britânica do Brasil, 1994. vol. 2, p. 484: Antropomorfismo:  Em sentido usual, significa a utilização de atributos humanos para representar ou explicar o não-humano. Os antropomorfismos existentes na Bíblia foram arrolados pela tradição exegética: o dedo de Deus, a cólera, a sabedoria, o ciúme, a piedade, o arrependimento de Deus, seus desejos e projetos [...]. Esses antropomorfismos, em conjunto, justificam-se por um princípio geral, ou seja, pela necessidade em que se encontra a pessoa que fala de utilizar uma linguagem que possa ser compreendida por aqueles que a ouvem.
[7] Conf., XI. 7, 9.
[8] Conf., XI.10.11.
[9] Ibid., XI.10.11.
[10] Ibid., XI.10.12.
[11] Ibid., XI. 1.1.
[12] Conf., XIII, 33, 48.
[13] BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. Campinas: Luz para o caminho, 1998. p. 61.

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