A consequência lógica da
antropologia Agostiniana só pode ser uma: o amor limitado de Deus.
Evidentemente que esse termo precisa ainda ser esclarecido. Quando dizemos “amor
limitado” de Deus, não estamos querendo reduzir algo que, por si só,
é infinito. Mas queremos dizer que a destinação eterna desse “amor salvífico”
tem caráter específico e não contempla toda a raça humana, antes, pelo
contrário, contempla apenas, só e somente só, o número exato daqueles que foram
eleitos “antes da fundação do mundo” para a salvação. Nenhum a mais, nenhum a
menos. Para esses, e somente para esses, repetimos, o “amor salvífico” de Deus
não teve limites, chegando ao ponto extremo de entregar seu unigênito Filho
para morrer no lugar deles. “O amor salvífico de Deus é limitado na medida em que atinge,
por pura vontade Soberana do próprio Deus, somente os eleitos, tirando-os da condição
de perdição que um dia se meteram, em Adão, por vontade livre, e não tirando o
restante da raça humana desse estado de justa condenação eterna, mas apenas deixando-os onde, naturalmente, sua natureza decaída tem prazer em estar: distante de Deus. Por outro
lado, o amor salvífico de Deus é ilimitado porque não mede esforços para salvar os
predestinados”.
Para Agostinho,
sendo o homem incapaz de qualquer bem por si só, estando com sua natureza corrompida
e totalmente depravado, resta-lhe tão somente esperar o favor não merecido da
graça divina. A partir desse ponto, e como consequência lógica e racional de
sua antropologia, ele desenvolve seu conceito de predestinação. Essa doutrina,
embora tenha suas bases firmadas em escritos paulinos, é a alternativa racional
encontrada por Agostinho para resolver o problema da natureza decaída do homem.
Ora, se o homem,
segundo Agostinho, não possui mais as condições para, por suas próprias forças,
fazer qualquer bem que concorra para a reabilitação de sua própria natureza e
considerando ainda que a revelação escriturística o fazia entender que nem
todos, por mais que tentassem, alcançariam tal reabilitação, Agostinho avança,
para a única conclusão cabível como desfecho de sua antropologia, para a única
alternativa de reabilitação da alma decaída, isto é, a predestinação. Agostinho
chega à conclusão que, na eternidade, Deus teria escolhido alguns homens para
agraciá-los com essa graça salvífica, não por merecimento, pois, por
merecimento todos deveriam, justamente, perecer eternamente na condição
decaída, como ele mesmo afirma:
Esses testemunhos
demonstram a concessão da graça de Deus não em atenção aos nossos merecimentos.
Às vezes verifica-se a concessão não somente faltando merecimentos, mas
existindo desmerecimentos prévios (AGOSTINHO. A graça. p.37).
No segundo
volume de sua obra “A graça” Agostinho desenvolve de forma clara e inequívoca,
não somente as bases de sua soterologia, mas, sobretudo, o desfecho lógico de
sua antropologia, diz ele:
Procuremos entender a vocação própria dos eleitos, os quais não são
eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer. O próprio
Senhor revela a existência desta classe de vocação ao dizer: Não fostes vós que
me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (Jo 15: 16). Pois, se fossem eleitos
porque creram, tê-lo-iam escolhido antes ao crer nele e assim merecerem ser
eleitos. Evita, porém, esta interpretação aquele que diz: Não fostes vós que me
escolhestes. Não há dúvida que eles também o escolheram, quando nele
acreditaram. Daí o ter ele dito:
Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi, não porque não o escolheram para ser
escolhidos, mas para que o escolhessem, ele os escolheu. Isso porque a
misericórdia se lhes antecipou (Sl 53:11) segundo a graça, não segundo uma
dívida. Portanto, retirou-os do mundo quando ele vivia no mundo, mas já eram
eleitos em si mesmos antes da criação do mundo. Esta é a imutável verdade da
predestinação da graça. Pois, o que quis dizer o Apóstolo: Nele ele nos
escolheu antes da fundação do mundo?(Ef 1:4). Com efeito, se de fato está escrito que Deus soube de antemão os que
haveriam de crer, e não que os haveria de fazer que cressem, o Filho fala
contra esta presciência ao dizer: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu
que vos escolhi. Isto daria a entender que Deus sabia de antemão que eles o
escolheriam para merecerem ser escolhidos por ele. Consequentemente, foram
escolhidos antes da criação do mundo mediante a predestinação na qual Deus
sabia de antemão todas as suas futuras obras, mas são retirados do mundo com a
vocação com que Deus cumpriu o que predestinou. Pois, o que predestinou, também
os chamou com a vocação segundo seu desígnio. Chamou os que predestinou e não a
outros; predestinou os que chamou, justificou e glorificou (Rm 8:30) e não a
outros com a consecução daquele fim que não tem fim. Portanto, Deus escolheu os
crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. Diz o apóstolo Tiago: Não
escolheu Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros
do Reino que prometeu aos que o amam? (Tg 2:5). Portanto, ao escolher, fá-los
ricos na fé, assim como herdeiros do Reino. Pois, com razão, se diz que Deus
escolheu nos que crêem aquilo pelo qual os escolheu para neles realizá-lo.
Pergunto: quem ouvir o Senhor, que diz: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi,
terá atrevimento de dizer que os homens têm fé para ser escolhidos, quando a
verdade é que são escolhidos para crer? A não ser que se ponham contra a
sentença da Verdade e digam que escolheram antes a Cristo aqueles aos quais ele
disse: Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi (AGOSTINHO. A graça.
p.194,195).