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terça-feira, 17 de abril de 2012

A CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA BERGSONIANA PARA A QUESTÃO BIOÉTICA DO ABORTO EM FETOS ANENCÉFALOS E DA EUTANÁSIA - Parte II



A continuidade da duração da consciência em Bergson: Corpo e Alma - uma consciência para além do cérebro

Estamos sujeitos às mesmas leis que operam sob todas as outras matérias. Temos um corpo, circunscrito no espaço, de forma que, pelo menos na visão do senso comum e, se considerarmos as questões pertinentes à imobilidade, se o impulsionarmos para frente, ele avança; se, pelo contrário, nós o puxarmos, ele recua e, se o largarmos, ele cai. Nosso corpo age deliberadamente por movimentos provocados por causas exteriores. Como afirma Bergson: “a matéria é inércia, geometria, necessidade” (BERGSON, 1979d, p.75).

Nossa identificação com o material é tão forte, e não poderia deixar de ser, que, como bem nos afirma Bergson, “Costuma-se dizer às vezes: Em nós, a consciência está ligada a um cérebro, por isso, é preciso atribuir a consciência aos seres vivos que possuem um cérebro, e recusá-la aos outros” (BERGSON, 1979d, p.72).

Nesse sentido, acredita-se que, desintegrando-se o cérebro, também se acaba a consciência e, por estar tão ligada a ele, acabam por confundir-se.

Para a ciência, essa consciência está tão intrinsecamente ligada ao corpo, que este a acompanha desde o seu nascimento até a sua morte; e, ainda que, por suposição, existisse uma consciência distinta do corpo, isto é, uma consciência não provocada pelo movimento das moléculas cerebrais, ainda assim, tudo se passaria como se ao corpo estivesse ligada, de forma inseparável e, tudo que aconteça a ela – consciência – estará sempre relacionado, diretamente, a algo que tenha iniciado, provocado ou sofrido pelo corpo. Se respiramos cloro, éter ou gás carbônico, por exemplo, seguindo a linha de raciocínio da visão científica, nossa consciência se esvai; da mesma forma, quando ingerimos bebidas alcoólicas, como resultado teremos uma consciência exaltada; se somos acometidos por uma doença infecciosa, que atinja, de alguma forma, o cérebro, deixando seqüelas, ficamos alienados, isto é,  sem consciência. Nesses casos, quando há óbitos, a ciência sempre relaciona a causa da “perda da consciência”, a lesões no cérebro e, quando essas lesões não podem ser localizadas, a patologia é atribuída a alterações químicas nos tecidos cerebrais.

Além desses exemplos que acabamos de citar, a ciência avança a passos largos para o chamado mapeamento do cérebro. Acredita-se que, com esse mapeamento fisiológico do cérebro e, conseqüentemente, com a descoberta da função que possui cada zona do cérebro em específico, ter-se-á desvendado o mistério da consciência, trazendo com isso o tão sonhado domínio completo e a previsão perfeita de todos os atos humanos, ou, pelo menos, de grande parte. Seria uma espécie de fim daquilo que é tão contrário ao espírito científico: a imprevisão e a desordem.

Consegue-se localizar e atribuir a certa zona cerebral algumas funções da consciência ou do espírito, como, por exemplo, a faculdade de executar movimentos voluntários. A ciência já consegue identificar que lesões, em determinadas partes ou zonas cerebrais, levam à paralisia dos braços e pernas; em outras, a linguagem é totalmente afetada. Até mesmo funções que são naturalmente atribuídas à consciência, ao espírito, como, por exemplo, a memória, pode ser localizada em alguma circunscrição das zonas cerebrais, e sofrerão danos se essas zonas forem atingidas e lesionadas.

Bergson, muito embora não tenha sido testemunha ocular dos últimos avanços nesta área, pensava diferente: “não se segue daí que um cérebro seja indispensável à consciência” (BERGSON, 1979d, p.72). Para ele, a consciência existe independentemente das funções cerebrais; isso equivale a dizer que ela não está presa ao cérebro, e nem mesmo existe por sua causa.

Bergson acreditava que atribuir consciência apenas aos seres vivos que possuem cérebro, utilizando-se para isso uma argumentação baseada em analogias exteriores para explicar coisas interiores, por meio de probabilidades, era uma argumentação extremamente viciada. Diz ele:

Para saber com plena certeza se um ser é consciente, seria preciso penetrar nele, coincidir com ele, ser ele. Eu desafio a provar, por experiência ou por raciocínio, que eu, que lhes falo neste momento, sou um ser consciente. Eu poderia ser um autômato engenhosamente constituído pela natureza, indo, vindo, falando; as próprias palavras pelas quais me declaro consciente poderiam ser pronunciadas inconscientemente. Todavia, se a coisa não é totalmente impossível, conceder-me-ão que ela não é de forma alguma provável. Entre vocês e mim há uma semelhança exterior evidente; e desta semelhança exterior concluirão, por analogia, uma semelhança interna. O raciocínio por analogia não dá jamais algo além da probabilidade (BERGSON, 1979d, p.72). 

Para argumentar ainda contra essa linha “viciada” de raciocínio, que apregoa uma consciência ligada, necessariamente, a um cérebro, e utilizando-se dela para, por fim, negá-la, Bergson argumenta que, “raciocinando da mesma maneira, diríamos também: A digestão está ligada em nós a um estômago; por isso os seres vivos que possuem estômago digerem, os outros não digerem” (BERGSON, 1979d, p.72).

Afirmar assim, acreditar assim, de forma positiva, seria, parafraseando suas palavras, “um grave engano”, pois, como ele mesmo afirma, “não é necessário estômago, nem mesmo órgãos para digerir: uma ameba digere, embora seja uma massa protoplasmática apenas diferenciada” (BERGSON, 1979d, p.72).

Em sua análise sobre a suposta necessidade da existência de um cérebro como condição sine qua non para a existência de uma consciência, Bergson chega à conclusão de que isto é simplesmente um problema fisiológico, deixando clara sua intenção de desconstruir essa idéia, não ao acaso, e de forma cética, mas, como veremos mais adiante, essa desconstrução inicial servirá de base para uma surpreendente abertura para a possibilidade do “além”, da “eternidade”.

Na tentativa de banir, definitivamente, o binômio cérebro x consciência, Bergson desce à cadeia de evolução na série animal e demonstra existirem seres vivos que, mesmo não possuindo cérebro, agem como se de fato possuíssem uma consciência.

Em certo sentido, para ele, “a rigor, tudo o que é vivo poderia ser consciente: em princípio, a consciência é co-extensiva à vida” (BERGSON, 1979d, p.72).  Evidentemente, Bergson também admite que, quanto mais se baixa na cadeia evolutiva da série animal, mais existe uma tendência de essa consciência vir a “adormecer”, isto é, tornar-se menos ativa, nunca de ser reduzida a nada. Contudo, o fato de ter o sistema nervoso humano um grau elevado de complexidade e distinção, dando-nos, assim, a impressão de ter a consciência vida tão somente no vai-e-vem das moléculas cerebrais, não nos autoriza, de forma alguma, uma conclusão de ser a existência de um cérebro única condição para a existência de uma consciência:

Lembremos da ameba, de que falávamos há pouco. Na presença de uma substância que lhe pode servir de alimento, ela lança para fora filamentos capazes de apreender e agarrar corpos estranhos. Estes pseudópodes são verdadeiros órgãos e, conseqüentemente, mecanismos; mas são órgãos temporais, criados pelas circunstâncias e que já manifestou, parece, um rudimento de escolha. Em suma, de alto a baixo na cadeia da vida animal vemos exercer, embora sob a forma cada vez mais vaga na medida em que consideram os graus mais baixos, a faculdade de escolher, isto é, de responder a uma excitação determinada por movimentos mais ou menos imprevistos. A consciência retém o passado e antecipa o futuro, é precisamente, sem dúvida, porque ela é chamada a efetuar uma escolha: para escolher, é preciso pensar no que se poderá fazer e lembrar as conseqüências, vantajosas ou prejudiciais, que já foi feito; é preciso prever e recordar (BERGSON, 1979d, p.73).

Dessa forma, Bergson se diz satisfeito e considera plausível sua conclusão e resposta à questão inicialmente levantada: todos os seres vivos são seres conscientes? “A consciência, originalmente é imanente a tudo que vive” (BERGSON, 1979d, p.74).

Essa linha de pensamento e busca constante para provar que existe consciência além do cérebro aparece também, de forma bastante significativa e volumosa, em sua obra “Evolução Criadora”. 

6 comentários:

  1. Filósofo, o único acesso que tive a Bergson foi quando o estudei junto de Freud num trabalho em que ambos desfilam suas "teorias sobre o riso". No mais, nunca mais li Bergson. Digo isso porque, com a leitura deste post, ficou-me a dúvida de onde vai dar tudo isso. Em outras palavras, não sei se Bergson é cristão, daí, toda essa teoria da consciência exposta hoje aqui, pareceu-me querer ser uma porta aberta ao panteísmo. Se a consciência é algo que vai além do ser humano, isto é, se a consciência é um atributo dos seres vivos, então me veio toda aquela conversa de Gaia, Boff e Telhard de Chadin à memória. Será que Bergson desaguou nistO? Ou será que seus discípulos usaram seus escritos para embasarem o neo-panteísmo?

    Compreendo que a consciência deva estar desvinculada do cérebro, pois como cristão, creio que a minha alma terá consciência. Todavia, pular disso para "todos os seres vivos", realmente não sei onde pode dar.

    Aguardo os demais.

    Abraços sempre afetuosos.

    Fábio.

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  2. Casal20:

    Sua observação é muito boa. A ideia realmente soa um tanto quanto estranho, muito mais por pré-conceito que por questões teóricas e conceituais. Contudo, passa longe do panteísmo. Bergson não era Cristão, porém, certamente, era monoteísta e consciência da existência de um Deus pessoal que se revela. Ele era de família judia e, no fim de sua vida, ensaiou uma aproximação com o catolicismo, tendo desistido por solidariedade às perseguições que seus "irmãos" judeus estavam enfrentando. Mas o que realmente nos importa, neste momento, é a separação irremediável que ele faz de cérebro e consciência, o que possibilita uma ampla defesa contra o aborto e eutanásia.

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    1. Olá, Filósofo. Demorei, pois fiquei estes três dias sem acesso à internet. Sigo lendo.

      Fábio.

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  3. ótimos textos, Fábio. Mas, agora uma questão prática. 1) os seres humanos são mortais. 2) coração e cérebro podem parar de funcionar em momentos diferentes; 3) se o coração o fizer primeiro, acabou, mas se for o cérebro a 'morrer', tecnicamente o resto do corpo pode continuar 'funcionando' através de uma máquina (EU NÃO SEI POR QUANTO TEMPO); os protocolos médicos regulam que quando isto ocorre, está instalado o estado de morte, porque não há como, no estado da arte da medicina, fazer o cérebro 'voltar', portanto, a família é informada e os aparelhos que mantém o coração pode ser desligado. Aqui é o problema, que é tipicamente de nossa modernidade técnica porque só é possível em nossos dias de alta tecnologia. No passado, o sujeito simplesmente morria. Hoje, pode-se ligar a pessoa a uma máquina que lhe dará a sobrevida. Desta forma, declarada a morte cerebral e não havendo forma conhecida de reverter tal situação (morte cerebral não é coma, do qual muitos já 'retornaram'), porque desligar o aparelho seria crime? Entendo que eu posso concordar integralmente com Bergson, Fábio, e companhia, e mesmo assim, achar que a máquina deve ser desligada. Não é assassinato, não é suicídio assistido, não é nada. É o terrível dia mau da morte, que não pode ser revertido.

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  4. Prezado Cláudio:

    Suas observações sempre contundentes. Já que a máquina existe e que o indivíduo foi a ela ligado, sem ter escolhido e, portanto, mantido vivo, acaso não seria a mesma coisa desligar o botão e puxar o gatilho de uma arma para, assim, tirar-lhe a vida?

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